Sete anos depois do início da guerra na Síria, a saga de Afrin continua. Esta semana os bombardeamentos turcos atingiram uma escolta miliciana pró-síria que se dirigia ao enclave para apoiar o YPG, uma milícia afeta ao PKK (o Partido dos Trabalhadores do Curdistão), em estreita colaboração com os Estados Unidos na luta contra o Estado Islâmico. Desta vez, a imprensa internacional afirmou que as tensões envolvendo os vários atores na guerra civil e na luta contra o Estado Islâmico se pode transformar num novo foco de guerra de um momento para o outro, até porque a Turquia promete avançar em breve com forças terrestres.

Depois dos primeiros bombardeamentos deste ano a Afrin, em janeiro e fevereiro, os diplomatas americanos e turcos desfizeram-se em contactos bilaterais para evitar o pior, ainda que Recep Tayyip Erdoğan não tenha resistido prometer uma “bofetada Otomana” às forças militares dos Estados Unidos, caso estas se intrometessem no caminho da Turquia. Isto mesmo antes de o secretário de estado, Rex Tillerson, ter chegado a Ancara a semana passada para apaziguar as hostes, ainda que com pouco sucesso. Como foi dito anteriormente, os Estados Unidos têm usado de muita contenção e paciência estratégica, o que terá dado a Erdoğan uma confiança que, entretanto, terá tido que repensar.

Independentemente do que se possa pensar da questão entre a Turquia e os nacionalistas curdos, Ancara cometeu três erros estratégicos: em primeiro lugar, envolveu-se aparatosamente num duplo conflito – a guerra civil da Síria, que tem sido o veículo usado pela Rússia, especialmente depois da hesitação de Barack Obama em relação à linha vermelha, para ser o estado mais influente na região do Médio Oriente e a luta dos Estados Unidos e dos seus aliados contra o Estado Islâmico. Digo aparatosamente, porque a região da fronteira norte da Síria tem sido palco de conflito mais ou menos latente ao longo dos anos. O que mudou foi o contexto e a determinação (talvez a melhor palavra seja hubris), do presidente de Turquia.

Em segundo lugar, o regime tem feito uso de um sentimento nacionalista para se auto-legitimar. Estas manobras têm sempre dois lados da moeda. Podem garantir a perpetuação de determinado líder no poder, mas são também são exímias em alienar aliados. Os Estados Unidos foram a primeira baixa: desde 2016, data do golpe de estado contra Erdoğan, que o “Outro” (é quase sempre preciso um ou mais “Outros” para suster um nacionalismo) é Washington, acusado de apoiar Fethulah Gulen na tentativa falhada de mudança de regime. Os EUA tornaram-se o bode expiatório turco, e mesmo que os corpos diplomáticos tentem aplacar os momentos de tensão, que têm sido vários nos últimos anos, o presidente turco encarrega-se de encher a imprensa nacional e internacional de soundbites que revelam o seu desprezo pelo ainda aliado americano. Ainda.

Finalmente, diz Erdoğan que só voltou a bombardear Afrin (esta semana) depois de ter falado com Vladimir Putin. Mas a verdade é que Sergei Lavrov, ministro dos negócios estrangeiros russo, afirmou, em linguagem diplomática, que o problema não é de Moscovo. Lavou daí as mãos, disse que Ancara tem de se entender com Damasco. A Rússia deixou Erdoğan cair, possivelmente por não querer ser importunada com questões vistas como secundárias numa região que considera cada vez mais a sua esfera de influência e o seu espaço privilegiado para enfraquecer o Ocidente – um tipo de comportamento internacional comum por parte de Moscovo. De uma forma ou de outra, a Turquia está isolada. Quem semeia ventos colhe tempestades. E quem sofre, mais uma vez, é a população. Afrin tornou-se uma região de refúgio para muitos sírios, que fogem dos focos mais intensos da guerra civil.

Independentemente das razões de uns e outros, o resultado final não deixa de ser o mesmo: a Turquia, engrandecida pelo seu nacionalismo, tem ignorado algumas regras básicas das relações internacionais (entre elas a prudência) e não se tem dado bem nem com deus nem com o diabo. E ainda que Trump possa estar a pôr em causa a ideia da importância do tipo de regime, a democracia ainda é uma das poucas garantias de transparência nas relações entre os estados. E a Turquia parece não ter percebido nenhum destes princípios. Anda entretida com bofetadas Otomanas.

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