Desde há vários anos que me questiono sobre o Natal que tenho e o que deveria ter. Não que não goste das festas de família, antes pelo contrário. Também não estou cansada da mesma festa todos os anos. A minha vida tem tido mudanças boas e outras menos boas que tiveram sempre impacto nas festas de Natal por isso não me queixo de monotonia. Mas ainda assim mantinha-me inquieta.

Gostava de viver o nascimento do menino Jesus, como vivo o nascimento dos meus filhos. A cada ano que passa recordo aquele momento único, a lembrança do local, do médico, das enfermeiras, daquela alegria indescritível de ver o nosso bébé, o sentimento de gratidão por ser saudável, enfim toda essa memória faz parte, no meu íntimo, do festejo do dia de anos de cada um. A memória de cada filho é mesmo única: cada um nasceu em seu hospital, uma foi prematura, só a primeira foi parto normal, ao mais novo não pude dar de mamar, com rapaz mais velho tive a primeira epidural, enfim cada um tem uma história diferente que saboreio sempre que se festejam os seus anos.

Descobri que era isso que me faltava no Natal: essa memória, procurar interiorizar o que se terá passado, e foi aí que nasceu a minha experiência de Natal este ano.

No dia 25 de Dezembro participei, com o meu marido e um dos meus filhos, de um percurso da comunidade Vida e Paz por Lisboa, para entregar uma merenda a alguns sem-abrigo que habitam nos cantos da nossa Lisboa. Ser sem-abrigo foi a condição da família de Nazaré no dia em que Jesus nasceu – estando sem abrigo, encontraram um cantinho (o estábulo segundo conta a história) onde certamente não cheirava bem, não havia quem os acolhesse, nem condições decentes para passar a noite. A temperatura não seria tão baixa como por cá, mas ainda assim devia estar frio. Depois, não bastando o insólito de toda a situação, tendo em conta que Maria sabia que aquele bébé era o Salvador, apareceram os pastores para os saudar, o depois tudo o resto que conhecemos.

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Estar com os sem-abrigo não foi como tinha imaginado. À hora que passámos muitos já estavam a dormitar e por isso indisponíveis para conversar. Impressionou-me ver alguns lugares onde já se encontra quase uma camarata de sem-abrigo. Lado a lado, lá estão eles. Uns com mantas e almofadas, alguns em vez de almofadas dormem abraçados ao seu cão, outros estavam debaixo de caixotes que fazem da casa e alguns mesmo com pequenas tendas improvisadas. Nesses grupos destaca-se a solidariedade. Os que estavam acordados certificavam-se que não nos esquecíamos de deixar a merenda ao lado da “cama” dos que estavam a dormir.

Pensava que ia encontrar pessoas com muita fome mas a maioria não tinha fome. Um até nos disse que apenas queria um yogurte porque estava “embuchado”. Percebi mais claramente que aquelas pessoas o que realmente não têm é amor-próprio e esperança. E então ali se deixam ficar e ali criam os seus novos amigos que não os desiludem porque deles nada esperam.

Muitos dos que visitamos até nos desejaram bom Natal. Eram na realidade iguaizinhos a nós naquela noite de dia 25. Vim para casa com um sentimento de vazio porque percebi que as soluções mais fáceis não servem (dar comida, roupa ou dinheiro). Podem resolver o momento mas não reabilitam a pessoa. A Comunidade Vida e Paz tem no seu projecto toda a componente de acolhimento e reabilitação mas o primeiro passo tem que ser de quem precisa e muitos desses, porque perderam a vontade, porque não têm esperança ou porque ganharam vícios, não dão esse primeiro passo.

Voltámos para casa e fui dormir na maior tristeza. Acordei a meio da noite e chorei amargamente por me sentir quase ridícula na minha vontade de mudar o mundo. Fui para junto do meu presépio e lá estava Jesus nas palhinhas e os seus Pais zelando por ele. Foi aquela serenidade que me acalmou. Não sou eu nem ninguém que muda nada sozinho, mas sim com Deus, acredito. A nós cabe-nos ser os pastores do Presépio que na sua humildade anunciaram a maior de todas as notícias.

Em particular impressionou-me o Terreiro do Paço: lado a lado com a imponente árvore de Natal que acolhe os turistas dormiam certamente pior do que habitualmente alguns dos sem-abrigo que visitamos, por causa da luz exuberante que irradiava da árvore. Isto contado não se acredita tal é a frieza e a insensibilidade do quadro.

O cheiro, o frio, o estranho de estar com quem habita a cidade onde vivo mas dorme num canto da rua, ficará na minha memória. São a memória de Natal que procurava. E tal como no nascimento dos meus filhos, a dor, o medo ou o cansaço são apenas vivências que ajudam a trazer à memória o grande acontecimento de cada nascimento.

No Natal de há dois mil anos passou-se que um casal não teve de ninguém o acolhimento de que precisava e ainda assim nasceu Jesus. Portanto sabemos que o momento presente por muito mau que seja pode ser sempre o início de uma vida nova.

A partir de agora o Natal será diferente seja qual for o festejo. Partilho esta experiência porque estou certa que esta inquietação não é só minha e o confronto com os factos, no meu caso, ou a leitura desta experiência será certamente fecunda. Para mim este foi mais um feliz Natal.