Com o tempo, o tempo muda e muda a nossa visão dos tempos. Muda a nossa percepção subjectiva deles, porque, entre outras coisas, muda o nosso corpo e não somos já os mesmos. No princípio, o corpo era uma entidade una e indivisível, que funcionava, como lhe competia, como um todo. Com a idade, pouco a pouco, ameaça transformar-se num aglomerado de orgãos diversos, cada um correndo para o seu lado, subitamente dotados de um destino autónomo, conspirando, suspeita-se, para a ruína do conjunto. Como não havia de mudar a nossa percepção do tempo e dos tempos assim? O estado do corpo dita em larga medida o modo como se vive a duração e o modo como se vive a duração determina a percepção dos tempos.

Acresce a isto a nossa história pessoal. Tomemos o meu exemplo. Nasci em 1960 e durante uma longa fatia da minha vida julguei ter nascido muito depois da Segunda Guerra Mundial. Hoje, vejo-me como tendo nascido quase junto ao seu fim. O que era distante tornou-se próximo. E, de uma certa maneira, isso obriga-nos a entender diferentemente os tempos em que dantes vivemos: percebemos de modo diverso as razões de aqueles tempos serem como eram, os motivos da sua singularidade. Com o tempo, mudou o modo como vemos o tempo a que chamamos nosso.

Depois, com o tempo, muda o mundo à nossa volta. Desapareceram pessoas e coisas, apareceram outras pessoas e outras coisas. Fiquemo-nos pelas coisas. Mais um exemplo. De um dia para o outro, descobrimos que uma casa que conhecíamos perfeitamente desapareceu e em seu lugar se encontra um edifício completamente diferente. Tentamos pensar na casa que já não lá está e pela qual passamos vezes sem conta e verificamos que ela deixou de existir no nosso espírito, sem deixar um só traço na memória. Sentimento de culpa: não prestamos suficiente atenção às coisas. Mas sentimento de culpa, ao mesmo tempo, exagerado: no fundo, cada um de nós só pode prestar verdadeiramente atenção a um número relativamente restrito de coisas.

As mudanças no mundo à nossa volta podem, é claro, ser óptimas. Larga parte da vida das pessoas a partir de certa idade foi vivida sem sequer ser concebível a simples possibilidade de estar na rua a levantar dinheiro de uma parede e a falar ao telefone ao mesmo tempo. O exemplo poderá parecer pueril, mas não creio que o seja, embora seja certamente menor e não o mais nobre. Mas o que isto mudou (para o bem, embora certamente também para o mal nalguns aspectos) na vida das pessoas nem se diz.

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Uma coisa é certa. A partir de certa altura, há demasiadas mudanças à nossa volta para nos ser impossível não nos darmos conta que o mundo mudou e que fomos testemunhos dessa mudança. O que convida a revisitarmos as mudanças do mundo por que passámos e a procurar perceber quais aquelas das quais tivemos consciência, quais as que nos foram imperceptíveis. Nas palavras de um filósofo, se fomos entidades despertas, se fomos entidades adormecidas. Se levarmos o exercício a sério, saímos dele com uma percepção do tempo histórico que não é coincidente com a nossa percepção subjectiva do tempo: nem com a percepção do tempo que o nosso corpo permite, nem com aquela a que nos leva a nossa história pessoal. O mundo exterior existe mesmo. Com o tempo, mudam os tempos.

O lugar onde isso se verifica talvez melhor é no plano das crenças, no modo como elas mudam. Não digo, é claro, que não haja crenças que não variam. Não digo sequer que muitas variações de crenças não sejam, em larga medida, caracterizadas pela projecção sobre objectos diferentes de crenças que são essencialmente as mesmas. Há demasiados exemplos de casos assim para que o possamos negar. Mas, é claro, as crenças mudam mesmo. Entre outras, crenças de comportamento – o que se deve e não se deve fazer – e crenças de linguagem – o que se pode e o que não se pode dizer. Nos anos sessenta do século passado, por exemplo, havia nos jardins do Palácio de Cristal, no Porto, duas muito reduzidas jaulas, quase mergulhadas na espessa neblina do rio Douro, onde tinham metido um macaco e um leão. A toda a gente, naquela altura, o espectáculo parecia de uma impecável normalidade. Hoje, de acordo com as nossas crenças, a barbaridade da coisa é patente. Na altura, naquela sociedade, estava longe de o ser. É um exemplo entre muitos, é claro, mas creio que é um exemplo paradigmático.

O espectáculo no domínio da linguagem é particularmente fascinante. A par de palavras que desaparecem por assim dizer naturalmente da nossa linguagem quotidiana, há palavras que, por várias razões, e quase literalmente (“Se quiseres falar assim, vai para outro lado”), são ostracizadas. Tal como as crenças relativas ao comportamento, as crenças relativas às palavras são complexas. Estou muito longe de considerar a maior parte delas malfazeja. E o mesmo valerá, com toda a probabilidade, para as que em seguir vierem. Mas, ao mesmo tempo, não conheço razão alguma que nos deva levar a considerá-las como, por definição, excelentes e indisputáveis.

Um critério para avaliar o grau de aceitação das novas crenças, um critério negativo, é o do ridículo: quando a nova crença é ridícula, há boas razões para a rejeitar. Claro que é um critério muito falível, já que a própria caracterização do ridículo é sempre contextual. Por isso mesmo, vale apenas o que vale e não convém abusar dele. Convém ser latitudinário. Por mim, por exemplo, e isso vale tanto para as crenças relativas ao comportamento como até para as crenças relativas à linguagem, estendo este estado de espírito ao chamado “jornalismo de causas”. É verdade que parece muitas vezes ridículo. E é verdade, também, que se uma pessoa se define inteiramente como “anti” qualquer coisa (“anti-racista”, por exemplo), tende, até pela preservação da sua identidade pessoal e pela particular natureza da sua especialidade, a encontrar racistas (ou xenófobos, ou outra coisa qualquer) em todo o lado. O macartismo é uma disposição de espírito fácil de adquirir por qualquer um. Passa-se do ridículo ao grotesco. E o grotesco é geralmente o anúncio do terrível. Mas, quando se fica aquém do patamar do grotesco, pode bem ser que, somando tudo, os efeitos dessas crenças sejam benéficos. Quem sabe? Nascemos em tempos diferentes e por vezes percebemos melhor o que perdemos do que aquilo que ganhamos. Sem excluir certamente a possibilidade de aquilo que se perde ser uma perda que não traz consigo ganho de qualquer espécie.

Uma coisa, no entanto, torna certas práticas deste tipo perigosas. É quando elas se encontram subordinadas a uma crença maior: aquela segundo a qual o curso da história obedece a um sentido necessário e tudo o que escapar a esse sentido se encontra afectado de ilegitimidade. É uma crença de aquisição fácil e mais poderosa do que parece. Muito novinho, quando li algum Marx pela primeira vez, pareceu-me uma evidência, e quem me negasse a existência do tal sentido da história era como se me negasse a existência da mesa à minha frente. Passou-me muito depressa a alucinação, graças a Deus, mas há muita gente a quem infelizmente nunca passou. Para quem pensa assim, a relação com as crenças, e em primeiro lugar as crenças políticas, é uma relação que obedece a um modelo de necessidade.

Dito de outra maneira: a fronteira entre as crenças legítimas e as crenças ilegítimas é uma fronteira perfeitamente determinada, “científica”. Dito ainda de outra maneira: a política enquanto tal, que vive do confronto de crenças opostas, rodeadas de indeterminação, encontra-se ela própria desligitimada na sua essência. O que conta é a vitória (necessária) da crença que a ciência garante. Passando para casos concretos, é isso que subjaz a maior parte das vezes à crítica da “democracia formal”, e, por exemplo, ao apoio ao regime de Maduro na Venezuela. Porque a democracia formal instaura uma igualdade no valor das crenças que vai contra a ciência que nos assegura que só algumas são efectivamente legítimas e porque o regime de Maduro vai verdadeiramente no sentido da história. Sofisticações mais ou menos recentes desta tese não mudam em nada o seu carácter fundamental.

Mesmo para alguém (é o meu caso) para quem a palavra “progresso” aplicada aos costumes e às instituições faz todo o sentido, embora de um modo radicalmente diferente e muito mais problemático do que quando se fala de progresso no domínio das ciências, vale a pena exercitar a reserva face à convicção segundo a qual tudo é feito de “avanços” dotados de uma bondade intrínseca. Sobretudo quando os arautos desses “avanços” pretendem obliterar a materialidade histórica do passado e traçam uma linha feita de certezas entre as boas crenças e as más crenças. Esquecem que os tempos trazem sempre outros tempos e que as crenças, os valores, desses novos tempos serão com toda a probabilidade, diferentes dos deles. A falta de compreensão pelo passado traz consigo uma muito curiosa rejeição do futuro. É uma forma comum de ignorância.

PS. Num post scriptum à sua coluna de ontem no Observador, Luís Aguiar-Conraria, convida-me, a pretexto de um passado artigo meu sobre a necessidade de as comunidades islâmicas condenarem o terrorismo praticado em nome do Islão, a demarcar-me eu próprio do assassino racista, adepto da supremacia da raça branca, de Charlottesville. Com toda a franqueza: espero que esteja a brincar.