Março de 2017 será um marco para a Medicina em Portugal. A colocação de uma prótese cardíaca mecânica constituiu exemplo de capacidade, decisão e competência, que se saúdam. Mais uma demonstração da capacidade do Serviço Nacional de Saúde (SNS) em incorporar a inovação terapêutica ao serviço dos portugueses.

Nas doenças cardiovasculares a cirurgia é frequentemente a última fronteira entre a Vida e a Morte. É habitualmente cara, mobiliza importante conjunto de recursos tecnológicos, materiais e humanos. Desafio técnico e científico para os profissionais, mas também para a organização dos serviços, e com dimensão ética indeclinável.

Será que esta despesa elevada é aceitável perante limitações ainda existentes, financeiras e de disponibilidade institucional, no contexto do SNS? Poderão os recursos ser melhor utilizados? Isto é, será legítimo financiar o acesso de apenas alguns aos procedimentos mais caros se persistirem dificuldades na concretização de objectivos mais gerais e abrangendo maior número de pessoas doentes?

O tema é desafiante, mas não é uma questão nova, acompanha a inovação terapêutica e o desenvolvimento da Medicina. Conheço bem o assunto porque o vivi, como responsável do serviço de Cirurgia Vascular do Hospital de Santa Maria (SM-CHLN), no tratamento das doenças mais complexas e extensas da aorta, que são causa de mortalidade evitável também em Portugal, e com o impacto da nova tecnologia endovascular que introduzimos em Portugal, a qual é também cara. O objectivo é tratar situações potencialmente fatais, prolongar a Vida com autonomia e qualidade e reduzir o sofrimento individual. Problema actual, perante a mudança do paradigma demográfico com o envelhecimento progressivo da população e a maior prevalência das doenças cardiovasculares, da insuficiência cardíaca aos aneurismas da aorta.

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Uma solução foi definir limites etários, primeiro os 65 e depois os 70 ou 75 anos, para além dos quais alguns tratamentos deveriam ser omitidos, privando os doentes dessa oportunidade terapêutica. O rationale era linear: a esperança de vida seria muito limitada para que houvesse real benefício do tratamento. A célebre equação custo-benefício, tornada mais premente pelo incremento das necessidades globais de Saúde, os seus custos inerentes e a necessidade de assegurar a maior equidade no serviço público.

De fora, ficavam outras considerações, mais subjectivas dificilmente quantificáveis para análise objectiva e padronizada: qual o valor de cada vida humana? Que significado para as expectativas individuais suscitadas pela esperança de melhoria clínica ou de cura, para alguma réstia de felicidade, individual e familiar, ainda ambicionada? O episódio dramático dos doentes com hepatite C e as consequências de uma política de financiamento, que procurou racionalizar o acesso e os custos inerentes ao tratamento, em termos de vidas perdidas (uma que fosse teria sido suficiente!), obrigam-nos a todos clareza de ideias e firmeza nas decisões.

A idade cronológica é uma armadilha, não pode ser o factor limitante, sem ponderação atenta da esperança de vida potencial, da capacidade biológica do doente – a idade biológica que os médicos procuram perceber – a possibilidade de prolongar a Vida com autonomia e qualidade, a avaliação criteriosa dos riscos potenciais da terapêutica e do benefício potencial esperado e o direito inalienável da Pessoa Doente ao tratamento, após informação adequada e decisão conscientemente assumida em parceria com o médico responsável. São estes os critérios que devem presidir à decisão médica.

O SNS cumpriu sempre a sua missão, nunca negou administrativamente proposta adequadamente fundamentada, proporcionando os meios para a sua concretização, como o fez agora, e nas doenças complexas da aorta, cujo tratamento com endopróteses (método endovascular) ou por cirurgia convencional é também muito dispendioso, mas que permite prolongar a Vida a esses doentes. Questão recorrente, porque a sobrevivência será maior, mais doentes em fase mais avançada da sua doença, e cujo tratamento dependerá de actuações diferenciadas, tecnologicamente evoluídas e caras. Organização no sistema de saúde, gestão rigorosa dos recursos, minimizando desperdício por descuido, ineficiência e actuações não exactamente pautadas pelo rigor científico e profissional, são requisitos essenciais.

No domínio das doenças cardiovasculares, como noutras certamente, é fundamental reconhecer que para certos procedimentos, pela sua raridade e mobilização de recursos para a sua concretização, é melhor e mais rentável centralizar a sua execução, em vez de estimular dispersão. Mas esta, será sempre uma decisão política.

Só concentrando experiência, se pode atingir expertise, ter dimensão crítica e poder acumular casuística relevante, alicerce indispensável à decisão e escolha da melhor terapêutica para cada caso individual. Assim como a cooperação internacional é fundamental na incorporação segura da inovação tecnológica e para assegurar o melhor resultado possível. Foi essa a estratégia que seguimos no HSM-CHLN nas doenças complexas da aorta nos últimos anos e que nos permitiu disponibilizar as alternativas terapêuticas mais adequadas a cada doente individual. Como coordenador de grupo de trabalho, propusemos recentemente em documento oficial, que fossem implementados dois centros públicos em Portugal, evitando dispersão de competências.

Estes são alguns dos nossos desafios: da comunidade médica, rigor, autonomia científica, responsabilidade pessoal e profissional; dos responsáveis públicos, confiança, determinação e uma política clara de racionalização e potenciação de recursos.

Defender a Vida disponibilizando aos doentes os tratamentos inovadores, de forma rigorosa, científica e competente, é também um desafio de Civilização que não poderemos ignorar.

Ex-director do serviço de Cirurgia Vascular do Hospital de Santa Maria/Centro Hospitalar Lisboa Norte