Não, não vou anunciar ao mundo, de novo, a máxima de Karl Marx, adaptada aos tempos actuais, “Pronetários de todo o mundo, uni-vos”. Podia, mas não vou fazê-lo. Pelo menos, por agora. Digo-vos, porém, o que me inquieta. Através da NET e das suas inúmeras redes e plataformas o potencial de extracção de mais-valias do trabalho humano é cada vez maior. Voltámos à indústria extrativa do capitalismo, agora por alguns também denominado de capitalismo cognitivo (Boutang, 2007) e por muitos outros com a designação ambígua de economia colaborativa. Passámos, pois, a ser colaboradores. Quer gostemos ou não, na era digital que já aí está, uma das alternativas em presença é a “via pronetária”, os precários da rede, os novos proletários da NET. Vejamos alguns aspectos em particular.

1. O mito libertário da fase original, a “internet primordial” ao serviço dos cidadãos
Esta “internet primordial”, que podemos fazer remontar ao período romântico dos anos setenta e oitenta do século passado, já lá vai, mas é interessante registar hoje um movimento de “regresso aos comuns” informacionais e cognitivos, para lá, evidentemente, da “ideologia proprietária” que ainda domina largamente o capitalismo como é o caso dos direitos de propriedade intelectual.

2. O hipercapitalismo GAFA (Google, Apple, Facebook, Amazon) e NATU (Netflix, Airbnb, Tesla, Uber)
Este hipercapitalismo, também chamado de “uberização” da sociedade, à imagem e semelhança da empresa UBER, congrega os grandes conglomerados da nova economia digital. No estádio actual da revolução digital, o vazio de poder criado pela inovação disruptiva apanhou o Estado-regulatório bastante desprevenido, impreparado e impotente. Estamos hoje em plena sociedade algorítmica rodeado de plataformas e aplicações por todos os lados. Enquanto se aguarda que a nova ideologia regulatória, talvez de origem europeia, com o mercado único digital, tome conta da ocorrência e ponha alguma ordem no sistema económico, o mundo do trabalho oscila completamente ao sabor da economia das plataformas hipercapitalistas.

3. A “uberização”, os “pronetários” e a lei de ferro da reputação
A ideologia da “uberização” é a última versão radical do capitalismo, desta vez com uma pretensão verdadeiramente alucinante, a saber, o anúncio de um novo regime independente pós-salarial “com reputação”. Doravante, não há relação salarial, não há sindicato, a reputação não tem contraditório, não há hétero nem auto-regulação, não há estímulos, trata-se, afinal, de trabalho dito independente, mais uma prestação de serviço do que uma relação contratual. Eis, pois, a “modernidade liquida” (uma homenagem a Zygmunt Bauman entretanto falecido) em todo o seu esplendor: tudo fluido, precário, transitório, passageiro, como tudo o que a UBER transporta. Estamos, portanto, em trânsito acelerado do precariado industrial para o pronetariado digital, quais escravos das redes e dos aplicativos e das “estrelas de reputação”, sempre no interior do capitalismo neoliberal e numa clara regressão civilizacional em matéria de direitos económicos, sociais e humanos. É preciso avisar, em particular, os nativos digitais mais distraídos para esta “sedução virtual” e para a ilusão do auto-empreendedorismo acessível que é passada através de uma presumida relação pós-salarial. O espírito comunitário e a solidariedade cooperativa e colaborativa ainda são os melhores antídotos.

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4. A utopia dos pares e a sociedade dos bens comuns colaborativos
Na outra grande via aberta pelas tecnologias da informação e do conhecimento, a chamada sociedade colaborativa ou peer to peer (P2P), vamos encontrar a sociedade civil em pleno movimento de auto-organização no interior da chamada economia colaborativa. Aqui, parece, voltamos à “internet primordial” e às comunidades de fornecedores e utilizadores. Na “internet primordial” estamos entre pares, discutem-se a melhor configuração para os ecossistemas digitais e os ambientes inteligentes que sejam acessíveis para os novos colectivos que nos representam. A grande via dos bens comuns colaborativos merece muito maior atenção por parte do chamado “quarto sector”, pois há aqui uma enorme margem de progresso na boa direcção. O problema maior reside, porém, na conversão de comunidades online em comunidades offline ou reais.

5. O Big Data e os mercados biface (two-sided markets)
Nas grandes plataformas e nas redes sociais em geral há uma produção continuada de informação que não é outra coisa senão a nossa memória e o nosso traço de comportamento em praticamente todas as circunstâncias da nossa vida quotidiana. Esta traçabilidade vai-se acumulando sob a forma de Big Data em grandes centros de recolha, tratamento e exploração de dados. Enquanto produtores dessa informação bruta, supostamente inofensiva, os cidadãos internautas não auferem nenhum tipo de compensação ou rendimento. Todavia, esta informação bruta, uma vez recolhida e trabalhada serve para traçar perfis de comportamento personalizados que são posteriormente vendidos às grandes companhias de bens e serviços. Estes mercados do Big Data com duas faces, muitas vezes intrusivos e agressivos, põem em causa a privacidade e os direitos fundamentais dos cidadãos.

6. O “desligamento” entre trabalho e rendimento, o rendimento básico universal
De acordo com o filósofo Zygmunt Bauman, o velho limite sagrado entre o horário de trabalho e o tempo pessoal foi ultrapassado, estamos permanentemente disponíveis, esquecemos o tempo para o amor, a amizade e a solidariedade; hoje discute-se, mesmo, o “direito de desligar” fora das horas de trabalho. Por outro lado, a precariedade do trabalho e a sua intermitência são uma realidade e, também, o seu corolário lógico, a pluriactividade e o plurirrendimento distribuídos por tempos de trabalho cada vez mais fracionados. Quer dizer, no que diz respeito aos trabalhadores precários eles têm cada vez menos uma identidade fundada no trabalho e a sombra do futuro não os preocupa, pois no futuro mais ou menos próximo todas as sociedades serão uma espécie de colecção de diásporas. É neste quadro geral que se inscreve a temática do rendimento básico universal (RBU), um rendimento desligado do mundo do trabalho tal como hoje é concebido. É um bom tema para inscrever na filosofia social e política da sociedade dos bens comuns colaborativa.

Notas Finais

A terminar, e em jeito de síntese, quatro pequenas notas finais.

Em primeiro lugar, o divórcio manifesto entre a política (local) e o poder (global), isto é, enquanto a política é doméstica e está territorializada, o poder é global e extra-territorial. Perante isto, o Estado-nação, tal como o conhecemos, é impotente. O poder real está fora das fronteiras nacionais. A democracia doméstica não convence, é pouco efectiva e é arrastada por esta crise do Estado-nação.

Em segundo lugar, a democracia doméstica só agora aprende a lidar com o universo digital mas as contradições são inúmeras. As comunidades virtuais online também são extra-territoriais e não se identificam com as antigas comunidades reais offline. A cultura conectada é uma bricolage permanente, muitas vezes é uma verdadeira caricatura, o discurso público é retórica pura e o espaço público está muito fragmentado para ser representativo e eficaz.

Em terceiro lugar, o capitalismo vai atacar de novo na versão “3C“, cognitiva, criativa e cultural; será um capitalismo ainda mais sedutor, omnipresente na vida quotidiana e distribuindo sensibilidade, empatia e felicidade; o risco de alienação é enorme e está em causa a “economia da atenção”; o acesso fácil e rápido ao oceano de informação que a internet e os motores de buscam proporcionam é uma verdadeira armadilha e deve ser tomado com conta, peso e medida.

Por último, há uma esperança imensa na “internet primordial” e na capacidade que ela tem de nos mobilizar a todos na boa direcção; há já uma energia positiva muito forte à nossa disposição, basta “apenas” que ajustemos um pouco melhor a nossa hierarquia de valores e o nosso sistema operativo à comunidade dos pares e aos bens comuns e colaborativos correspondentes.

Professor da Universidade do Algarve