Os antigos achavam que a posição relativa dos corpos celestes governava a sorte das pessoas. Se calhar, porque um dia uma grande sorte, ou azar, se abateu sobre alguém importante numa configuração especial do firmamento. Hoje, parece-nos absurdo que alguém tenha pensado assim – ignoramos os que ainda pensam por uma questão higiénica – mas vamos calçar os seus sapatos. As pessoas não tinham qualquer base teórica, tudo o que sabiam vinha dos dados empíricos. Por isso, nessa altura da história da humanidade, podemos dizer que astrologia era conhecimento. Errado, é certo. Absurdo, parece-nos. Mas era o que havia.

Isto prende-se com um quase automatismo do nosso cérebro de associar uma correlação ou simultaneidade a causalidade. Imagine-se que uma dada configuração do firmamento tenha ocorrido no dia antes a uma grande vitória numa batalha. Independentemente das razões teóricas que nos levem a associar os dois factos, a verdade é que eles se associam no tempo. Isso é inegável. O que é negável é que um tenha causado o outro. E temos muitas razões teóricas nos dias de hoje para dizer que não, aquela configuração do firmamento não deu origem àquela vitória na batalha. Mas do ponto de vista empírico, é natural que a associação de causalidade tenha sido feita.

Esta introdução toda para chegar ao tema que queria trazer: a regulação bancária, esse produto da astrologia moderna tão na boca do mundo. Em boa verdade, o Banco de Portugal já “queimou” boa parte do sistema financeiro português. O BPN, o BPP, o BES, o BANIF, a CGD e, agora, parece estar a colocar o Montepio em vinha d’alhos. Isto depois de ter esmifrado o BCP ao limite. O que, vamos concordar, é um registo admirável para uma instituição cujo papel é garantir a estabilidade do sistema financeiro nacional, que sobreviveu aos mais catastróficos eventos da vida do país, mas não à regulação proactiva em proteção do sistema, que detetou que todos estes bancos tinham “falta de capital”.

Mas, afinal, quantos depositantes foram ao banco buscar dinheiro e lhes foi negado? Tanto quanto me lembro, zero! Portanto, torraram-se 4 bancos, um está na grelha e outro a ser temperado e, na verdade, NADA aconteceu de relevante. Isto sem contar com as consequências económicas da contenção na cedência de crédito que, nalguns casos, atingiu os 40% de redução. Um equivalente em termos de urbanismo seria o Presidente da Câmara de Lisboa arrasar a Baixa e as Avenidas Novas antes que haja um terramoto.

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Mas são os funcionários do Banco de Portugal assim tão incompetentes? Não. Na verdade, até são competentes. O problema é mais grave que isso e prende-se com a questão da astrologia. Alguém associou o capital do banco e a estabilidade financeira. E isto não está errado em si mesmo, o que está errado é dizer que a causa da estabilidade financeira é o nível de capital. Que, como no caso da astrologia, são duas relações diferentes. Um exercício que gosto de fazer aos meus colegas oriundos da Economia é “virar o gráfico”. Quando os economistas fazem um gráfico, transmitem a ideia de que aquilo que metem em abcissas é causa daquilo que metem em ordenadas. O exercício é trocar as duas grandezas. Por exemplo, eu posso fazer um gráfico que relaciona o PIB e a taxa de desemprego que mostra que quanto maior a taxa de desemprego menor o PIB. Mas se virar o gráfico, mostro que a taxa de desemprego é tanto menor quanto maior for o PIB. Na realidade, ambos estão fundamentalmente errados porque a afirmação correta é que existem variações simultâneas das duas grandezas e não uma relação de causalidade entre uma e outra. A causa, que é comum a ambas, é a existência e crescimento da produção que faz movimentar as duas porque dar emprego, em si mesmo, não faz aumentar o produto. E como têm uma causa comum, acabam por ter variações simultâneas.

Eu tenho alguma dificuldade em entender de onde veio a ideia de associar a percentagem de capital à estabilidade, mas imagino que tenha origem no mesmo raciocínio linear que ampliou as crises globais mais recentes. A economia é um sistema em crescimento constante e cresce a partir da economia que existe (o capital). Um modelo semelhante é a árvore. Uma árvore cresce sempre com base na árvore que já existe e todos os dias é um pouco maior. Se olharmos para a árvore, ela tem uma geometria diferente dos sistemas que não crescem. Tem um tronco central, que se divide em trocos mais estreitos, que se dividem em troncos mais estreitos, etc. E assim vai crescendo e, quando cresce, todos os troncos crescem também e toda a árvore depende de todos os troncos, do central até às folhas.

Imagine agora que, por uma razão qualquer, se faz uma lei impondo um número mínimo de troncos filhos por centímetro de tronco pai. Os troncos que não cumprirem são cortados. Quando há muita luz e água, os troncos vão crescendo de forma salutar cumprindo o rácio que lhes está imposto. Mas num ano de seca poderá acontecer que se percam troncos mais finos. Os pais desses troncos são cortados por não cumprirem o rácio. Os pais destes, também. Até que a árvore acaba por morrer. Não porque tenha secado, mas porque a estupidez produziu uma lei. É verdade que há uma simultaneidade entre a morte de árvores e a secagem dos troncos filhos, isso é inquestionável. Mas não existe uma relação de causalidade! Simplesmente ocorrem por uma causa comum, a seca.

Quando a regulação bancária produziu uma regra impondo um rácio de capital mínimo aos bancos, fez exatamente a mesma coisa que a lei dos troncos. E vai cortando troncos até que a árvore morra finalmente. E a nossa árvore, aquela que é feita de bancos portugueses, está muito próxima do seu fim.

Voltemos à questão do ano de seca. Naturalmente, há anos piores e anos melhores, tanto na pluviosidade como na economia. Por isso, faz parte do negócio que muitos dos clientes dos bancos possam falir. Na imagem da árvore, muitos ramos pequenos possam secar. E é até possível que alguns bancos possam ter dificuldades de sobreviver, isto é, alguns ramos mais grossos possam secar também. Mas aquilo que é o papel de um regulador é proteger a árvore, não é produzir ou aceitar leis que, em caso de seca, a matam.

Quem me está a ler deverá pensar que este tipo agora arranjou uma imagem poética para justificar a ideia dele. Não tivesse eu os dados do meu lado – diria o leitor que a regulação está a correr bem? – tenho ainda aquilo que hoje o faz olhar com desdém as páginas de astrologia. Tenho a base teórica. O resultado geométrico de um sistema que está sempre a crescer é aquilo a que os matemáticos chamam de fractal. E economia, como uma árvore, tem a mesma “forma” embora não se veja da mesma maneira que uma árvore. Mas existem vários indicadores que permitem ver a geometria do sistema. Nessa base teórica, podemos olhar para os dados que relacionam o capital e a saúde do banco e dizer “vira o gráfico!”, ou seja, é o capital que dá saúde ao banco ou a saúde do banco que dá capital? E a resposta óbvia (nesta fase espero que sim) é que ambas as variáveis dependem da economia que circunda o sistema financeiro e não uma da outra.

Então podemos deixar os bancos em roda livre, é? Não. E volto a fazer a pergunta “afinal, quantos depositantes foram buscar o dinheiro ao banco e lhes foi negado?”. Quando, e se isso acontecer, então o regulador deve agir. E deve agir de forma dura, sem olhar para empregados, gestores, acionistas; acabar o banco nesse momento e distribuir a carteira pelos outros bancos. E para isso preciso de ter muitos ramos, muitos bancos que possam absorver a carteira e os empregados. Claro que existe risco para o contribuinte, há a possibilidade de o banco central ter que imprimir dinheiro para resolver uma crise bancária. Mas, na circunstancias em que hoje vivemos, onde já metemos vários milhares de milhões de euros para aumentar capital de bancos, ainda acha que o risco é maior se não houvesse esta regulação?

Gostava de terminar com uma palavra sobre o governador, que tão contestado tem sido. Como será óbvio das minhas palavras anteriores, estarei longe de ser um admirador da gestão do senhor governador ou de qualquer um dos demais 1700 empregados do Banco de Portugal. Mas a verdade é que, quer ele, quer os outros 1700, estão a cumprir aquilo que são as diretivas que Bruxelas, Londres, Frankfurt e Basileia emanaram com a conivência dos ministros das finanças de todos os países europeus e alguns não europeus. E estão a fazê-lo com um zelo e uma competência raras. Se assim não fosse, não estaríamos a falar de problemas porque, repito, nada aconteceu de realmente relevante com os depositantes. Tudo saiu do Banco de Portugal no cumprimento das regras.

Falar em substituição do governador ou do Banco de Portugal inteiro em nada vai resolver o problema de fundo que se prende, basicamente, com a incapacidade dos atores principais, que somos todos nós, de virarem o gráfico.

PhD em Física, Co-Fundador e Partner da Closer