Arde, país. A minha alma chora.

Hoje não me peçam artigos sobre relatórios e responsáveis, sobre causas e consequências, sobre medidas e ausências de medidas; hoje, a minha alma chora com o meu país que arde, o meu país ardeu e a minha alma chora.

Morreu gente, meus compatriotas, morreram velhos e novos, mulheres e homens, crianças, morreram a gritar no abraço incandescente das chamas. Ninguém os avisou que podiam morrer queimados, ou sufocados, no século XXI, num país ocidental, dito civilizado, num país meridional, dito industrializado.

Hoje não discuto política porque hoje a política não serve para nada. Não me interessa nada saber se a floresta pública portuguesa ocupa apenas 3% da área total, fazendo do nosso um dos três países no Mundo com menos área florestal pública (esse valor é, a nível mundial, de 74%). Não sei nem me interessa saber se o valor económico da floresta em mãos privadas, salvo naturalmente as grandes empresas de celulose, é tão baixo que melhor será que arda…

Penso nos que perderam tudo e olham, olhos mortos, a casa ardida, a courela calcinada, os tições fumegantes no lugar das frondosas árvores que os saudavam de manhã. Penso neles e sei que este país, as autoridades deste país, tratarão de os acarinhar, dar-lhes-ão, sem pestanejar – ou, muito menos regatear – os meios para que possam reerguer-se, de olhos ressuscitados pela esperança. Como o sei? Sonhando…

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Hoje tinha planeado um artigo sem interesse, sobre o brexit ou as eleições austríacas, talvez sobre Trump e o acordo nuclear com o Irão, mas que interessa o futuro da Humanidade e os populismos face às paredes de fumo que fizeram do dia noite em Seia, em Gouveia?… quero lá saber, desculpem-me, do que se passa na Catalunha, só quero ver este meu país de marinheiros acordar para o perigo da insularidade interior, das terras vazias, dos locais povoados de velhos, espero para ver homens e mulheres com ganas a despir o traje – ó quão ilusório – de civilizados, na sua brandura de acções, fingida, pois que a violência da besta queima e nenhuma mansidão a acalma, imagino-os a deixar a sua vida pacífica, sentada, estática, regrada e revista, com ganas de tudo deixar para trás e, ao apelo que seduz Campos, navegarem! Ah pessoa, Pessoa, como te equivocaste, os meus irmãos e irmãs deixam-se ficar e, com pena, estou seguro, agarram-se ao bocado de terra, dois hectares e um porco para a matança, que lhes veio de herança.

Se o fogo vier, como todos os anos vem (e cada vez mais, cada vez maior), fugirão para a beira-mar, a aglomerada beira-mar onde os aguarda a grande vaga da contemporaneidade, entregue sem glamour às chusmas de visitantes estrangeiros que enchem os cofres da nação; e mesmo isso é uma ilusão, claro, uma pequena fracção do PIB, suficiente para alimentar a bolha que um dia rebentará e terá nome, um nome novo, assustador, ainda que nada seja tão assustador como as chamas grandes como casas no horizonte imediato das nossas vidas.

Não, hoje não me peçam textos densos, elaborados, conceitos importantes de ciência política ou filosofia. Fico-me pela tragédia dos montes, das escarpas e vales a norte do sistema Montejunto-Estrela, pelas imagens patéticas de mulheres aos gritos e por aquele post que já não sei onde li e que nem sei se dizia exactamente isto: “Não consigo ligar para a minha filha, por amor de Deus ajudem-me”. Hoje pensei na filha dessa mulher que não sei quem é, ignorei a diminuição da área arborizada do país, não quis saber se a responsabilidade é dos políticos, das populações ou da natureza, seja de quem for não me interessa, pensei nela e no seu desesperadamente humano desespero; e pergunto-me, claro, como reverter o ciclo infernal de despovoamento-abandono de gestão-perda de recursos florestais-despovoamento-incêndios-desertificação-despovoamento, e como não sei de respostas, não percebo nada do assunto, desligo-me, as autoridades que pensem nisso, que façam planos – ou os cumpram? –, que definam estratégias – ou as operacionalizem? –, que ajam – ou ajam?

Mas quem responde àquela mulher?

Caros leitores, sabei que se me atirardes pedras pelo conteúdo e forma deste artigo não vos levo a mal, é normal, abuso deste espaço e repito que, afinal, o que não é normal é morrerem mais de 100 pessoas num verão em Portugal, queimadas, sufocadas, destroçadas. Não em 2017. Eu sei que o aquecimento global… e que só vai piorar. Eu sei que a seca… e que se a chuva vier arruína o turismo nas cidades. Eu sei que o abandono dos campos, a economia da floresta (que não há), que o bem-estar da vida nas aldeias acabou com Júlio Dinis… sei bem que a utopia por definição não acontece.

Mas deixem-me sonhar com um país diferente, nosso, português, que cuide dos seus. Um país onde o fogo aqueça, não destrua. Um país em que os políticos aceitem as suas responsabilidades, em primeiro lugar, para com os cidadãos que os elegeram para… cuidarem deles. Leio por exemplo no relatório que todos dizem ter lido, que houve seis mudanças no figurino institucional da autoridade florestal nos últimos 20 anos depois de um século de estabilidade, e não ligo nenhuma porque não me diz respeito. E leio uma crítica ao voluntariado como base do sistema de ataque aos incêndios, propondo substituir os voluntários por profissionais, e penso naqueles que arriscam a vida pelos seus concidadãos e interrogo-me se a culpa será deles, afinal, e o meu coração, poderia jurar, sangra.

E leio ainda que os incêndios foram excepcionais, que há excesso de combustíveis no solo e uma gestão inadequada da prevenção, e deparo com uma proposta de pacto social entre proprietários, utentes e instituições. Mas eu não quero saber de nada disso.

Quero aqui apenas prestar uma homenagem a todas as vítimas, dizer-lhes que pensamos nelas, rezamos por elas, que as amamos mesmo sem as conhecermos, pelo que significam de sofrimento e dor. E que esperamos que o seu sacrifício, involuntário e injusto, leve finalmente à mudança. Para que Portugal não seja o país da Europa com maior número de fogos.

Nunca mais Pedrógão Grande, nunca mais Seia, nunca mais um oceano de fogo a atravessar a auto-estrada, a queimar carros e casas. Nunca mais a besta vermelha nas nossas vidas.

Ah Dom Dinis, Dom Dinis, quem replantará o teu pinhal?