Discurso de António Costa

na primeira intervenção no 23º Congresso do PS

Agradeço a todos os que votaram em mim para ser eleito pela quarta vez. Agradeço com emoção muito particular porque era difícil imaginar um momento onde fosse tão honroso liderar um partido como o PS num momento ao mesmo tempo tão exigente e tão empolgante da vida política nacional. Momento em que todos temos de nos mobilizar para acabar de vez esta pandemia, ultrapassar a crise e não perdermos a oportunidade histórica que temos de transformar a nossa sociedade, economia e país para termos um futuro melhor para todos em Portugal”

O cenário de guerra e drama carregado que António Costa traça não é inocente e surgiu, na sua primeira intervenção no Congresso do PS, em forma de agradecimento. Agradeceu aos que nele votaram para ser eleito pela quarta vez secretário-geral do PS por o terem posto naquele cargo no pior momento. Um aparentemente estranho obrigado-por-me-terem-dado-a-oportunidade-de-conduzir-uma-desgraça, mas que lhe serve na perfeição — numa altura que não tem nem oposição interna nem uma forte e organizada oposição noutras bancadas parlamentares — para se colocar no papel a figura nacional ungida para momentos de caos. A partir daqui, como veremos, passou ao longo desfiar de conquistas da sua governação, em forma de lições aprendidas. E deixou clara a vontade, pelo menos a esta distância, de ser ele a liderar a tal transformação social e económica, sublinhando que é “uma oportunidade histórica que tem em mãos”.

Tivemos momentos terríveis com esta pandemia e o nosso pensamento tem de ser para as quase 18 mil vidas que se perderam com a Covid ao longo deste ano e meio para o mais de um milhão de portuguesas e portugueses infetados. Mas temos de dirigir saudação muito calorosa a todos os profissionais de saúde, médicos, enfermeiros, técnicos de diagnóstico, assistentes operacionais, graças aos quais 94% dos doentes estão hoje recuperados e esperemos que de boa saúde”

Sem surpresa, a questão da pandemia centrou grande parte do discurso de António Costa que a aproveitou a toda a largura para galvanizar um partido apático — a falta de energia nos aplausos no arranque dos trabalhos arrepiava — e que salta das cadeiras mal ouve as três palavras mágicas do dicionário socialista: Serviço Nacional de Saúde. Foi assim também desta vez, logo quando começou a dirigir-se aos profissionais de saúde e o congresso aplaudiu de forma prolongada e em pé, com um acrescento nesta era socialista: no ecrã gigante da sala em vez de António Arnaut, o socialista “pai do SNS”, surgia a imagem da “nova militante socialista”, como assinalou Luís Graça quando começaram os trabalhos e chamou para ocupar o seu lugar na Mesa a Marta Temido. A ministra da Saúde voltou a aparecer sempre que Costa falou no tema. E as referências ainda iam no adro, como ser veria mais adiante. Também agradeceu, nesta fase, nas Forças Armadas e ao setor social. E, claro, ao “cidadão anónimo” que por causa de contactos de risco se isolou “para proteção do seu semelhante”, sobretudo aos que “confiaram na ciência e na vacinação como grande arma para vencer esta pandemia” e ao “extraordinário exemplo de maturidade cívica que nos tem dado as nossas crianças e jovens que este fim de semana se tudo correr bem vão permitir chegarmos ao final de domingo com 70% das crianças e jovens entre os 12 e os 17 anos com a primeira dose da vacina contra a Covid”. Se o objetivo era de elogiar todos os que tiveram papel relevante no combate à pandemia nos dois últimos anos, ficaram muitas áreas por assinalar, casos das forças de segurança e dos professores, por exemplo.

Há cinco grandes lições a retirar desta pandemia, a primeira é que um estado social forte é imprescindível. Sem um estado social forte não teríamos tido o músculo da segurança social a apoiar os rendimentos e os empregos e as empresas. Sem um estado social forte não tínhamos tido sobretudo um SNS que foi a grande resposta a esta pandemia. E depois de anos de campanha contra o SNS, sobre o caos do SNS, quando as coisas apertaram à seria quando foi mesmo necessário ter cuidados de saúde foi mesmo o SNS que deu a resposta a todas e todos os portugueses”.

Cá está a arma de Costa a começar a ser disparada sobre a plateia socialista que o ouvia no Portimão Arena ao final da manhã e como a primeira lição da pandemia. Mas aqui misturado com um ataque à direita, quando fala da “campanha de anos contra o SNS e o caos do SNS”, que lhe serve para passar ao elenco das suas políticas de investimento no setor, do fruto de “logo em 2016 ter definido o reforço do SNS como uma prioridade”.

Ao longo da última legislatura em conjunto com os nossos parceiros parlamentares repusemos ao longo de quatro anos a totalidade dos cortes que a direita tinha feito ao SNS nos anos em que governou. No ano passado, no início do ano, antes da pandemia, aprovámos um Orçamento para 2020 com o maior reforço de sempre da dotação inicial do SNS”

Neste tema não esquece os “parceiros parlamentares” que insistiram no reforço do investimento na saúde em cada negociação orçamental. Só não referiu a parte em que PCP e BE repetem, na mesma medida, os anúncios que Costa vai acumulando sem que execute o que prometeu, incluindo em negociações bilaterais. No caso, o líder socialista tentava apresentar aqui obra feita, apontando até o Orçamento Suplementar “com novo reforço do SNS” que fez mal a pandemia estava na sua fase inicial e que levou, segundo garantiu, a que o SNS saísse “reforçado quase tanto como nos quatro anos da legislatura anterior”.  Curiosamente esse Orçamento foi aquele em que a esquerda se começou a partir, com o PCP a votar contra esse Orçamento. E depois, no seguinte, para 2021, foi o Bloco de Esquerda que se separou da antiga “geringonça”. Também não terá sido por acaso que foi neste momento que Costa disse que este é “um esforço que temos e estamos a continuar”, afinal tem novo Orçamento em negociação e volta a precisar da esquerda parlamentar para o viabilizar.

A verdade é que vivemos momentos terríveis, muito exigentes, em que como diz o nosso presidente tememos estar à beira da exaustão. Mas a verdade das verdade é que em nenhuma circunstância, ao contrário do que muito prognosticavam, nunca nenhum profissional de saúde teve ao longo da pandemia de ser sujeito à violência dessa escolha terrível que é decidir quem salva ou quem deixa morrer porque em todas as circunstancias o SNS teve capacidade de responder às necessidades de cuidados de urgência dos portugueses”

E lá apareceu novamente no ecrã gigante a imagem de Marta Temido que foi, sem sombra de dúvida, o membro do Governo que esteve em destaque neste arranque do seu líder no Governo e agora também no partido a que se juntou. Embora Costa tenha apenas referido as políticas e nunca os políticos, no centro do furacão esteve sempre o mesmo. Ou como diria o próprio mal chegou a Portimão — dirigindo-se a Rui Rio — “o António Costa está cá”. E nunca outro, nesta hora de colher os louros em todas as áreas de governação.

Segunda lição: às crises responde-se com solidariedade e não com austeridade. Mais uma vez provámos, como tínhamos feito na legislatura anterior com os nossos parceiros, que há uma alternativa à austeridade. Não aumentámos impostos, não congelámos pensões, nem cortámos pensões, não congelámos nem cortámos vencimentos”.

A receita, no fundo, é sempre a mesma. É dizer: não fizemos como a direita. E tal como no SNS, também na área social propriamente dita, no apoio aos que mais precisam, Costa reclama para si ter encontrado a solução para responder às crises. Contrapondo a sua estratégia, que resume à “solidariedade”, à “austeridade” que ficou colada ao Governo PSD e CDS que governou com a troika chamada quando o PS ainda estava no poder, em 2011. Na “solidariedade” Costa inclui “o aumento de rendimentos”, nomeadamente a atualização do Salário Mínimo Nacional, a atualização extraordinária das pensões mais baixas e de todas as prestações sociais. E é aqui que entra também a intervenção para salvar empresas, para chegar à TAP.

Não hesitámos em intervir para salvar empresas absolutamente estratégicas para o futuro do pais como é a TAP e que vamos salvar porque é fundamental para assegurar a coesão territorial internacionalização da nossa economia”

E se, até aqui, Marta Temido apareceu com grande destaque nos ecrãs sempre que se falou no SNS, o mesmo não aconteceu com Pedro Nuno Santos, o outro governante que estava sentado no palco, mesmo na mesa ao lado, e que é responsável por esta pasta na governação. Pedro Nuno Santos tem estado na negociação do plano de reestruturação da empresa numa estreia na ação executiva fora da articulação política pura e simples que teve, numa primeira vida governativa, quando foi o pivot da “geringonça”, como secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares de António Costa. Agora, com a mão na massa, Pedro Nuno Santos tem em mãos alguns dos dossiês mais quentes, entre os quais a TAP, o que o põe à prova para lá do estratega político e, por isso mesmo, mais na calha de protestos. Está também na calha para a sucessão de Costa que não quer, por nada, meter-se nessa contenda e passou — para já na sua intervenção inicial — por entre os pingos da sucessão, sem promover ou apoucar nenhum em particular.

Foi esse investimento no rendimento, essa mensagem clara que dirigimos de não deixarmos as empresas morrer e os postos de trabalho desaparecer que incutiram confiança nas empresas, porque ao contrario do que a direita pensa não é cortando nos rendimentos que damos confiança a quem quer investir“.

Mais da tal receita. A solução da direita não serve em tempos de crise. E Costa segue com provas: “Foi por isso que apesar desta crise, no primeiro trimestre do ano, tivemos um novo máximo de investimento privado empresarial porque as empresas que acreditam no futuro têm confiança no futuro do nosso país”. E projeta mais além, em relação a esta “trajetória de recuperação”: “Levará Portugal ao nível dos países mais desenvolvidos da União Europeia”.

Uma terceira lição que é preciso reter: foi fundamental na legislatura anterior termos sabido combinar a rutura com a austeridade, com a firmeza na ambição de termos finanças publicas sãs, sem termos tido o excedente orçamental de 2019 (…) Convém nunca esquecer, hoje não podemos andar a fazer contas mesquinhas para não fazer a despesa que é necessário fazer para salvar os nosso serviços públicos (…) É essa confiança que mantém firme a credibilidade internacional do nosso país e que nos tem permitido que ainda na crise que estamos a atravessar tenhamos feito a primeira emissão de divida a dez anos com juros negativos o que significa que os famosos mercados não têm medo na nossa política, pelo contrário confiam no PS e na nossa política

Depois de três ataques seguidos à direita e à política austeritária, António Costa adivinha que de lá venha o ataque ao despesismo socialista que a direita paga no fim — e um ataque recorrente na disputa política entre as duas partes. Assim, preparou o contra-ataque: não só quer finanças públicas “sãs” e contidas, como conseguiu emitir dívida a dez anos com taxas de juro negativas. Conclusão: os mercados confiam no PS e na sua política. No fundo eram os papões com que a direita mais acenou em 2015 e que não largou nos anos seguintes na oposição. Costa quer enfiá-los no armário.

A quarta lição é que mais uma vez se provou que a UE é essencial para respondermos às crises globais. Aquilo que é mais evidente na vida de todos nos foi a decisão da UE proceder à aquisição centralizada das vacinas”.

Provou-se isso, mas o que António Costa quer mesmo mostrar com esta referência é, mais uma vez, que a direita estava errada e ele certo. “Não há nenhuma fatalidade da União Europeia alinhar com as políticas de direita e a austeridade. É extraordinário perceber que a direita portuguesa não aprendeu aquilo que felizmente a direita europeia já percebeu e a esta crise não respondeu da mesma maneira que respondeu na de há dez anos”. De um lado, a direita portuguesa que “continua a dizer que é contra o aumento do salário mínimo”, do outro “o passo histórico” da UE que emitiu dívida conjunta e acordou fundos para planos de recuperação dos estados membros. Só não recordou que nem todos os países fora da esquerda europeia concordaram com esse plano. Ou pelo menos com os seus moldes, colocando sérias reservas — que resultaram numa reunião de cinco dias do Conselho Europeu — nomeadamente à parte da parte que entrará no estados membros a fundo perdido. Longe de ter sido pacífica a negociação e unânime o entendimento sobre os moldes deste apoio que Costa elogia. Mas a verdade é que a referência veio também com o objetivo do auto-elogio, afinal Portugal esteve ao comando da UE durante seis meses, aqueles em que o plano de recuperação e resiliência foi aprovado.

Quinta e última lição: precisamos mesmo de acelerar a resposta a muitas das vulnerabilidades que a pandemia tornou mais evidentes. Nenhuma delas nos surpreende e todas estavam no nosso programa de Governo como merecendo ter uma resposta forte nesta legislatura”.

Música para os ouvidos da esquerda, que Costa sabe que tem de conquistar no próximo mês. A par da saúde, o combate à precariedade laboral é uma das bandeiras de PCP e BE que estão à mesa com o Governo. E também a deixa para incluir aqui outra matéria de “desigualdade”: o acesso às tecnologias da informação que foi exposto nesta pandemia.

É com orgulho que olhamos para o nosso país e vemos o nosso país ter passado de décimo país mais seguro do mundo em 2014 para quarto pais mais seguro do mundo em 2021, é com orgulho que vemos o trabalho feito na reforma na floresta”.

Longe vai o tempo em que se atravessava por Eduardo Cabrita com palavras. Agora, Costa centra-se nas políticas para elogiar a ação do Governo sem nomear sequer a pasta, ainda que na entrevista no dia anterior à noite tivesse apresentado estes dois exemplos como elogios à governação no seu ministro mais contestado do momento. Defende-o, mas de forma indireta.

A menos de um mês das autárquicas, quero deixar aqui uma mensagem clara de grande mobilização por parte do PS. Não somos um partido qualquer, somos o maior partido autárquico português. Somos um grande partido nacional e popular. Somos o único partido que tem autarquias nos Açores, Madeira, Algarve, Alentejo, Lisboa e Vale do Tejo, no centro no Norte.  Somos o maior partido nas câmaras nas freguesias e queremos continuar a ser

Todo um longo discurso e apenas três minutos finais para a mobilização para o combate que se segue no próximo mês, o das autárquicas. Mas também não se pode dizer que um discurso pleno de auto-elogios não sirva o objetivo de galvanizar o partido e, sobretudo, dar as coordenadas para as linhas de ataque e de defesa do PS por todo o país. O trunfo que Costa sugere para a luta que aí vem é ele mesmo.