E se a infeção pelo VIH (vírus da imunodeficiência humana) pudesse ser prevenida com um comprimido? Nos Estados Unidos o uso de um medicamento com este objetivo foi autorizado em 2012 e a Organização Mundial de Saúde (OMS) recomendou, esta sexta-feira, o uso generalizado de antirretrovirais (contra retrovírus, como o VIH) como preventivo entre grupos de risco. Mas a utilização destes medicamentos como forma de prevenção antes do primeiro contacto com o vírus tem causado alguma polémica.
Truvada (nome comercial) não é um medicamento novo, já é usado nos Estados Unidos desde 2004 e foi aprovado na Europa em 2005 – confirmou o Infarmed ao Observador -, mas o objetivo principal era outro – o tratamento de pessoas infetadas com VIH. O uso de medicamentos antirretrovirais como medida preventiva (profilática) também é comum: um médico que se pica com uma agulha de um doente infetado, uma pessoa que tem uma relação sexual não protegida e receia estar infetada ou uma criança filha de uma mãe seropositiva (infetada com o VIH) são alguns exemplos de pessoas que podem receber este tratamento – até quatro semanas de tomas diárias.
A novidade é a utilização de Truvada, dos laboratórios Gilead, como uma medicação preventiva para quem sabe que vai ter relações sexuais de risco – sejam profissionais do sexo que não conseguem impôr o uso de preservativo aos clientes ou pessoas que sistematicamente falham a utilização do preservativo.
Para tratar VIH, mas não só
Truvada, um medicamento patenteado que combina duas moléculas – tenofovir e emtricitabina -, é um dos antirretrovirais mais usados no mundo. Usado tanto no tratamento da infeção, como na prevenção pós-exposição e na prevenção da pré-exposição, deve ser sempre conjugado com uma terceira molécula.
Embora o Kivexa (também com patente e que combina abacavir e 3TC) e os comprimidos genéricos que combinam AZT e 3TC também sejam muito utilizados no tratamento da infeção, não são tão usados como medicamento de prevenção porque não se espalham tão facilmente nos fluídos do organismo.
Para a prevenção escolhe-se Truvada porque tem uma componente que difunde facilmente nos fluídos genitais (a emtricitabina) e outra (o tenofovir) que mantém uma concentração muito elevada no sémen. “Uma concentração elevada onde é mais preciso – quatro vezes mais [no sémen] do que no sangue”, diz ao Observador Jaime Nina, médico no Hospital de Egas Moniz. Desta forma impede que o vírus se instale.
Quem deve usar
A OMS recomendou o uso a homens que mantêm relações sexuais com outros homens, trangéneros e profissionais do sexo, mas ressalva que não se deve deixar de usar o preservativo. Luis Mendão, presidente do Grupo Português de Ativistas sobre Tratamentos de VIH/Sida (GAT), reforça que o medicamento não é um substituto do preservativo, que continua a ser melhor forma de prevenção. O preservativo previne não só contra as infeções pelo VIH, mas também contra outra doenças sexualmente transmissíveis, como a hepatite, a gonorreia ou a sifílis.
Também num casal serodiscordante — em que um se encontra infetado (seropositivo) e outro não (seronegativo) — o medicamento pode ser usado pelo elemento seronegativo para reduzir o risco de infeção. Adicionalmente, o elemento seropositivo deverá também estar a tomar medicação para reduzir a quantidade de vírus no sangue.
Os maiores receios
Em Portugal os medicamentos antirretrovirais só podem ser obtidos nas farmácias hospitalares mediante receita. “A possibilidade de comercialização em farmácia comunitária implicaria uma alteração ao estatuto de dispensa ao público atualmente aprovado”, eslarece o Infarmed. Jaime Nina, especialista em doenças infecciosas, que a disponibilização nas farmácias comunitárias, ainda que com receita, pode levar a uma utilização abusiva.
Quando se desrespeitam as regras da medicação — toma diária e à mesma hora –, tal como é exigido com os antibióticos (medicamentos contra bactérias), o vírus que se pretende eliminar pode tornar-se resistente ao tratamento. Se este vírus mais resistente for passado a outras pessoas pode disseminar-se mais ou menos rapidamente. E aí os medicamentos normalmente usados deixam de ter qualquer efeito sobre ele, tornando esta resistência um problema de saúde pública.
Os vírus resistentes à medicação representam um risco, não só para quem é seronegativo, mas também para seropositivos que estão a fazer medicação – a exposição a um vírus mais resistente pode ter consequências nefastas nestes doentes já fragilizados.
Jaime Nina refere, pelo mesmo motivo, que os medicamentos para a tuberculose e lepra são apenas disponibilizados pelas farmácias hospitalares — para garantir a toma e preservar a eficácia. Por outro lado, os antirretrovirais são medicamentos tóxicos para o organismo, naúseas e diarreias ou, nos tratamentos mais prolongados, insuficiência renal ou descalcificação dos ossos. As as pessoas que os estão a tomar devem ser vistos regularmente pelo médico para ver se a medicação é a adequada ou se deve ser modificada.
Vale a pena tentar
Uma das principais vantagens da toma desta medicação preventiva antes da exposição ao vírus é reduzir o número de pessoas infetadas. No final de 2012 havia 35 milhões de pessoas infetadas e diagnosticadas no mundo. Em Portugal são diagnosticados 1.500 novos casos todos os anos, refere Luis Mendão.
O Truvada pode ser tomado diariamente como no caso da pessoa seronegativa nos casais serodiscordantes, ou tomada esporadicamente na antecipação de um momento em que se sabe que se vai ter um comportamento de risco. De notar que apesar dos bons resultados alcançados pela medicação, não se garante 100% de segurança – um estudo revelou uma eficácia de 44% na prevenção da infeção entre homens homossexuais (poderia ser maior se a toma fosse regular), outros estudos mostram que entre casais serodiscordantes o risco diminui em mais de 60% dos casos.
Mesmo entre homossexuais as opiniões dividem-se: enquanto uns encaram esta medicação como a possibilidade de uma vida sexual livre, sem receios nem inibições, outros temem que este excesso de liberdade leve ao descontrolo e à perda de dignidade. Alguns comparam os antirretrovirais preventivos com a pílula anticoncecional. No ínicio, receava-se que as mulheres que as usavam se tornassem mais disponíveis e aumentassem o número de parceiros, mas não há indícios de que isso tenha acontecido.
Interesses escondidos
Depois de ver o medicamento Truvada, aprovado como profilático pela FDA (Food and Drug Administration, organização norte-americana responsável pela aprovação de medicamentos), os laboratórios Gilead verão o bem sucedido medicamento render ainda mais. Tendo em conta que a medicação custa qualquer coisa como 1.300 dólares (cerca de 960 euros) por mês, esta nova utilização acaba por ajudar ainda mais no retorno financeiro da empresa. Mas a empresa assume esta utilização como uma intervenção importante para a saúde pública e não como uma oportunidade comercial. Os laboratórios Gilead, além de financiarem modelos de educação e esclarecimento sobre medicação preventiva, têm nos Estados Unidos um programa para apoiar doentes sem seguro de saúde e que não podem suportar os custos.