Título: The Commissar Vanishes: The Falsification of Photographs and Art in Stalin’s Russia
Autor: David King
Editora: Tate Publishing
Preço: 19,99£ (cerca de 27,50€)

Capa The Comissar Vanishes

Qualquer bom bolchevique deveria ter uma resposta satisfatoriamente heróica para a pergunta “Onde é que estava em Outubro de 1917?”. Stalin, porém, não tinha tido grande protagonismo, nem em Outubro nem nos meses de tumulto revolucionário que se seguiram. Nikolai Sukhanov, cronista da revolução, referiu-se à sua figura nesse período como “um borrão cinzento, emergindo tenuemente de vez em quando, mas sem deixar qualquer marca”. No álbum fotográfico Outubro, editado em 1920 por ocasião do II Congresso da Internacional Comunista e que passava em revista três anos de revolução, o nome de Stalin não era mencionado uma única vez. Trotsky considerava-o “a mais distinta mediocridade do nosso partido”. Mas assim que assumiu o poder, o ardiloso georgiano lançou a mais vasta e completa reescrita da história que o mundo já conheceu.

É da componente iconográfica dessa mega-operação revisionista que nos dá conta este fascinante livro de David King, um dos grandes especialistas na história soviética e autor dos não menos recomendáveis e visualmente sedutores Red Star Over Russia (2009) e Russian Revolutionary Posters (2012), livros tão indispensáveis para compreender a história da URSS como os de Anne Applebaum, Orlando Figes, Richard Overy, Laurence Rees, Robert Service ou Timothy Snyder. The Comissar Vanishes foi publicado originalmente em 1997, mas como dos arquivos ex-soviéticos têm continuado a emergir novos documentos, King lançou em 2014 esta versão revista e aumentada, em que 1/3 das 336 imagens são novas.

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O livro confronta fotos originais dos primeiros anos da URSS com as sucessivas versões que os censores soviéticos delas foram produzindo e de onde vão desaparecendo todas as figuras que foram incorrendo no desagrado ou suspeição de Stalin. E uma vez que o universo de inimigos, adversários ou rivais de um paranóico terminal é ilimitado, tal significou que carrascos e censores vivessem numa azáfama incessante. À medida que as pessoas de carne e osso eram enviadas para o Gulag ou fuziladas, também a sua presença nas fotos era anulada, mediante reenquadramento, pintura a aérografo ou sobreposição de outras figuras ou elementos arquitectónicos; havia também figuras que mudavam de posição e cabeças que mudavam de corpo. O Photoshop estava ainda muito distante e a manipulação era feita com tesoura, cola, tinta e muito pouca arte e esmero: abundam imagens inverosímeis, atentados às leis da perspectiva, iluminações contraditórias e supressões incompletas, que esquecem bocados de corpos ou deixam entrever vultos fantasmagóricos.

Como complemento a estes “retoques”, a polícia secreta passava a pente fino livrarias e bibliotecas em busca de exemplares das edições pré-purga, recolhendo-os em depósitos ou destruindo-os. Mas a marca de distinção da censura estalinista foi conseguir levar todo um povo a ser seu cúmplice: é que também os proprietários dos livros reproduziam, de forma tosca, os gestos censórios e de cada vez que algum dirigente caía em desgraça, apressavam-se a vasculhar os livros que possuíam em busca dos novos “inimigos do povo” e a riscar os seus nomes e a cobrir ou desfigurar os seus rostos, receando ser acusados de possuir material subversivo. Nos anos 30, a posse de um livro em que figurasse, por exemplo, uma foto de Trotsky – mesmo que fosse um livro publicado pelo Partido ou um organismo oficial, como o acima mencionado álbum Outubro – era um passaporte para o Gulag.

Mas nem só de subtracções se fez a reescrita da iconografia soviética: havia também que multiplicar as multidões que escutavam os discursos de Lenin e Stalin até atingirem dimensões condizentes com o estatuto semi-divino dos oradores. Por outro, o culto da personalidade que Stalin criou em torno de si era incompatível como o seu discreto papel nos primeiros anos da cruciais da Revolução, pelo que os artistas e especialistas de propaganda se atarefaram a inserir a sua figura em fotos e quadros, quase sempre ao lado de Lenin. Foi tão maciça e eficaz esta campanha que ainda hoje, mesmo no Ocidente e entre quem não tem simpatias pelo estalinismo, prevalece a ideia de que Stalin foi tão importante como Lenin ou Trotsky na Revolução de Outubro. Na URSS de Stalin, então, muito poucos se atreveriam a crer noutra versão dos acontecimentos. Nikolai Sukhanov, o cronista da revolução que descrevera Stalin como um “borrão cinzento”, transformou-se ele mesmo num borrão e acabou fuzilado em Junho de 1940. Dois meses depois, seria a vez de o homem que rotulara Stalin como “a mais distinta mediocridade do partido”, perecer no exílio mexicano, sob o golpe de um pico de gelo na nuca.

Embora Stalin e Lenin tenham sido os principais beneficiários da campanha de enaltecimento iconográfico, nos primeiros tempos da revolução era também frequente a promoção de outros heróis bolcheviques, que surgem nas fotos conferenciando, com expressão decidida e grave, em torno de mapas, como se estivessem a tomar decisões no calor da batalha – embora seja evidente que foram fotografados num estúdio, que a paisagem é uma tela e que os troncos e pedras sobre as quais estendem as cartas militares são de papier-mâché.

Se, no clima de paranóia instaurado na URSS, ninguém estava a salvo de ser acusado de ser sabotador, terrorista, espião ou agitador (a soldo da Alemanha nazi, do Japão, do capitalismo internacional, de Trotsky, dos saudosistas do czarismo) ou anti-patriota ou nacionalista ou burguês ou “liberal”, quem corria mais riscos eram os que faziam parte do “aparelho”, pois eram eles que poderiam ter meios e oportunidades para desafiar o poder de Stalin, ou pelo menos, para mitigar o seu brilho – uma piada em voga (subterraneamente) na Rússia estalinista colocava um casal a despertar, sobressaltado, a meio da noite com as pancadas brutais da polícia política na porta do seu apartamento e a responder “Os comunistas são no andar de cima!”

Com efeito, as razias entre os dirigentes soviéticos documentadas nas fotos são impressionantes: numa reunião, a 17 de Outubro de 1918, do Sovnarkom ou Conselho dos Comissários do Povo, contam-se 33 comissários – mas as purgas sucessivas fizeram com que na foto final sobrassem três, para lá do sacrossanto Lenin. Da vintena de delegados presentes numa foto do VIII Congresso do Partido Bolchevique, em Março de 1919, 11 foram eliminados por Stalin e três suicidaram-se – concomitantemente, a foto também foi alvo de uma purga, reduzindo-se a três figuras (Stalin, Lenin e Trotsky), depois a Stalin e Lenin e, finalmente, apenas a Stalin (uma situação invulgar, dados os esforços da propaganda para aproximar Stalin de Lenin). Dos 14 dirigentes presentes na foto do IX Congresso do Partido Bolchevique, em Março de 1920, apenas Lenin e Kalinin morreram de morte natural – Stalin encarregou-se dos restantes.

The Commissar Vanishes é um catálogo de ausências, uma galeria de rostos desfigurados ou obliterados com tinta, um inventário de mutilações, de onde emerge uma única figura, envolvida numa ominosa penumbra de aerógrafo: Stalin, reinando sobre o vazio.