Quase 35 anos e dez comissões parlamentares de inquérito depois, o “Caso Camarate” continua longe de conhecer um desfecho. Esta quarta-feira, Fernando Farinha Simões e José Esteves, que em ocasiões anteriores assumiram a autoria do alegado atentado, voltaram a ser ouvidos no Parlamento, sem que, no entanto, o seu testemunho tenha ajudado a juntar as muitas peças do puzzle em que se transformou a queda da aeronave Cessna, a 4 de dezembro de 1980.

Os dois entraram pela porta das traseiras do Parlamento, diretamente para a sala número 6, a mesma usada para ouvir Ricardo Salgado meses antes. No entanto, ao contrário do que aconteceu com o presidente do Banco Espírito Santo, as audições de Farinha Simões e José Esteves foram realizadas à porta fechada.

Ao Observador, José Ribeiro e Castro, deputado do CDS, explicou que tal decisão foi “ponderada” e acabou por ser motivada pela necessidade de “não perturbar a comissão de inquérito” e de preservar os testemunhos de todo o “mediatismo” e “show-off” associados ao caso, “não os distorcendo no seu conteúdo”.

Ainda assim, segundo o que o Observador conseguiu apurar junto de fontes parlamentares, Fernando Farinha Simões, o primeiro dos dois bombistas a ser ouvido, “não disse nem acrescentou nada de novo”. Embora não se tenha escusado a responder às perguntas dos deputados – como, de resto, o fizera em 2013 – o confesso autor do atentado, atualmente a cumprir pena no Estabelecimento Prisional de Vale de Judeus – por crimes não relacionados com Camarate -, alegou “não se lembrar” de diversos factos e datas.

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Vale, por isso, o depoimento que ainda hoje lhe é atribuído, publicado em 2012 na Internet. Na altura, o próprio terá assumido ter sido um quadro da CIA até 1989 e ter participado em atividades criminosas relacionadas com o alegado atentado. Factos que Fernando Farinha Simões voltou a não negar esta quarta-feira, assim como já o tinha feito na última audição.

Quanto a José Esteves, que assumiu em 2013 no Parlamento ter sido ele o autor do engenho explosivo, voltou a confirmar essa versão dos acontecimentos: o alvo do ataque seria Adelino Amaro da Costa e a operação serviria para afastar pessoas da Aliança Democrática “que estavam a criar problemas no transporte de armas”. Francisco Sá Carneiro terá sido uma vítima colateral.

Esta é, pelo menos, a versão de 2013. Antes, em 2006, quando o antigo segurança revelou pela primeira vez o seu envolvimento direto no suposto atentado, o alvo seria, afinal, o general Soares Carneiro, candidato presidencial pela Aliança Democrática.

O plano seria pregar “um susto” a Soares Carneiro, mas tanto José Esteves como Farinha Simões terão sido peões num plano maior que tinha como finalidade afastar definitivamente Francisco Sá Carneiro e Adelino Amaro da Costa, então primeiro-ministro e ministro da Defesa, respetivamente. Segundo esta versão (a primeira) os dois foram surpreendidos quando souberam quem eram de facto os alvos, já o plano estava prestes a concretizar-se.

Segundo um fonte parlamentar ouvida pelo Observador, José Esteves voltou a optar pela segunda versão (Adelino Amaro da Costa era o alvo do ataque), mas não terá explicado todas as contradições dos seus testemunhos. “O senhor José Esteves já se disse e contradisse uma série de vezes”, afirmou a mesma fonte, admitindo que era difícil perceber onde estaria a verdade.

No depoimento enviado em 2013 à X Comissão Parlamentar de Inquérito à Tragédia de Camarate, José Esteves revelou que no “dia 1 de dezembro de 1980”, terá participado numa reunião onde estavam também presentes Fernando Farinha Simões, Sinan Lee Rodrigues e Carlos Miranda, o mesmo que esta quarta-feira voltou a ser ouvido pelos deputados. Segundo foi possível apurar, Carlos Miranda não terá – tal como os anteriores – acrescentado novos elementos ao processo. Foi a terceira audição do dia, a terceira pouco conclusiva.

Sobre esta última personagem não se sabe muito. Segundo a versão de Farinha Simões, que, aliás, confirmou a existência desta reunião, Carlos Miranda, especialista em explosivos, foi comandante da Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA) e depois membro dos Comandos Operacionais de Defesa da Civilização Ocidental (CODECO), uma organização paramilitar fundada por Farinha Simões de que faria parte também José Esteves. Não foi possível apurar se Carlos Miranda assumiu o seu envolvimento na CODECO.

Em declarações ao Observador, José Ribeiro e Castro preferiu não referir-se concretamente a nenhum dos inquiridos, mas revelou que houve “um testemunho bastante satisfatório”, um segundo que se “recusou [simplesmente] a responder” e um terceiro que alegou “algumas faltas de memória”, mas que terá “respondido a algumas questões”.

Ainda assim, para o deputado centrista esta comissão de inquérito, “que deverá ser a última” relativa ao Caso Camarate, permitiu “verificar alguns detalhes e factos” e “confrontar versões”.

Mesmo admitindo que será difícil perceber algum dia o que se passou de facto no dia 4 de dezembro 1980, Ribeiro e Castro acredita que esta comissão conseguiu reunir alguns dados úteis para perceber o “móbil, alvos e autoria do atentado”. Sim, porque, diz, a tese de acidente parece cada vez fazer menos sentido depois de 30 anos a investigar o desastre que vitimou Francisco Sá Carneiro, Snu Abecassis, Adelino Amaro da Costa, o chefe de gabinete do primeiro-ministro, António Patrício Gouveia, assim como os dois pilotos do avião.

O caso “Camarate” nunca chegou às barras dos tribunais e para Ribeiro e Castro o motivo é simples: “a Justiça não fez o seu trabalho”, nem perante todas as “incongruências e falhas na investigação”. Agora, três décadas depois, e apesar de lembrar que “muito do que sabe hoje só é possível sabê-lo à custa do trabalho das várias comissões”, Ribeiro e Castro assume que toda e qualquer investigação que possa ser conduzida é feita em “sobresforço”.

A X Comissão Parlamentar de Inquérito à Tragédia de Camarate deverá apresentar conclusões até ao final deste mês. José Matos Rosa, deputado social-democrata que preside à Comissão, explicou, em declarações à Agência Lusa na última sexta-feira, que já tinham sido reunidos “todos os elementos que estavam em falta”, entre os quais a “documentação relativa à auditoria final do Fundo de Defesa do Ultramar”.

O Fundo de Defesa Militar do Ultramar (FDMU) e o comércio e exportação de armamento foram as duas principais linhas de investigação seguidas pela X comissão.