Viajávamos em carros cheios de fumo de cigarros. Há mães que têm fotografias a dar de mamar enquanto fumam e pegar num cigarro de chocolate ali pelos quatro anos era mais ou menos obrigatório.

Na verdade os cigarros de chocolate (1) não sabiam muito bem mas davam muito estilo. Algumas embalagens eram iguais às dos cigarros verdadeiros. Também havia cigarros de açúcar (2). Branco e muito refinado obviamente. Cigarros de brincar também havia (3). Faziam fumo e tudo até porque os meninos deviam imitar o pai. Em tudo.

Acabado a fase cigarro de chocolate entrava-se num momento de maior actividade. Não sei como os adultos que hoje transportam os filhos já praticamente adolescentes sentados numas cadeiras de segurança devidamente homologadas explicam aos seus filhos o que era um carrinho de rolamentos ou carrinho de esferas (4). Estes tinham um lado que hoje seria considerado ambientalmente correcto: eram integralmente construídos com base no reaproveitamento de materiais. O pior era o resto. Estão a ver aquela rua muito inclinada? Desciam-se no carrinho de esferas e travava-se com o calcanhar.

A par da pergunta “Gostas mais do pai ou da mãe?” os frisos de cuecas de menina nos livros da Anita (5) eram incontornáveis). Valeu às gerações futuras a proliferação do divórcio (que tornou a fatal pergunta numa inconveniência) e a popularidade das calças de ganga logo adoptadas pela Anita e suas amigas.

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O outro lado pouco apresentável da nossa infância prende-se com as raças. As raças humanas agora não existem mas nos anos 60 eram popularíssimas e arrumavam-se em álbum. Cientificamente e com muita cola Cisne a transbordar de umas raças para as outras (6) Além da inconveniência das temáticas os cromos (7) eram uma iniciação ao capitalismo selvagem: nas trocas o preço não era regulado. E no caso concreto das raças umas valiam mais que as outras. Um horror!

Frequentemente as raças passavam à acção: combates entre índios e cowboys eram um must (8). Fulminantes e balas de plástico compunham os arsenais infantis (9). Em alguns destes apetrechos também se podia usar grão e feijão. Às vezes os combates terminavam com o confisco das armas por uma adulta chamada mãe que usava uma arma chamada palmada.

Machismo. Violência gratuita. Voyeurismo. Militarismo ou desrespeito pela compostura devida às Forças Armadas… Alguns brinquedos, como é o caso desta pistola (10), acumulavam vários inconvenientes. Outros, como era o caso das figas (11), causavam problemas mais sérios. Cabeças, vidros e pássaros eram as principais vítimas destas peças de artesanato que as professoras e os polícias diziam estar mandatados pela lei para confiscar.

Os espectáculos a que nos levavam também tinham muito que se lhe dissesse: o bombeiro toureiro e os seus anões eram bem populares (12). Milhares de crianças riram com eles. Hoje o riso tornou-se hoje uma coisa muito mais complicada.

Agora que os lobos oficialmente são vegetarianos e os cães comem tofu não sei como explicar isto: muitos heróis da nossa infância matavam animais (13), comiam-lhes a carne e vendiam-lhes as peles. Tinham uns amigos que eram os selvagens bons que os ajudavam a vencer os selvagens maus. E víamos tudo isto sem bolinha!

Eu sei que a Heidi (14) chegou um pouco mais tarde mas vale a pena recordar que a Heidi andava semi-despida e descalça na neve, pendurava-se nos desfiladeiros e tinha como principal amigo o Pedro, um menino subalimentado e que guardava o rebanho de manhã à noite Pelos critérios de hoje a Heidi e o Pedro estariam sinalizados como crianças em risco. No final dos anos 70, a Heidi foi a vingança do neorealismo na sociedade de consumo! Já o Marco (15) para os padrões de hoje é um filme de terror da austeridade: veio a crise e a mãe do Marco foi para a Argentina trabalhar. Como não havia skype o Marco levava o genérico e os episódios a correr atrás da mãe e a pedir “Não te vás embora mamã”. Revejam. Mas preparem-se para chorar.

Por fim e para o fim um símbolo de como a imaginação dos adultos não tem limites na hora de entreter as crianças; este laboratório atómico (16) criado nos anos 50 está considerado como um dos mais perigosos e inconvenientes de sempre: até continha amostras de urânio. Pensamos nós contudo que teria dado um grande contributo para a paz mundial se tivessem enviado pelo menos um exemplar para a Coreia do Norte.