Foi um dos assuntos que marcou os últimos dias em Portugal. Um vídeo de uma agressão policial no final do jogo entre o Guimarães e o Benfica, colocou em causa a atuação da polícia que agrediu dois homens perante o olhar e o choro desesperado de duas crianças. Correu muita tinta, já se abriram inquéritos e o adepto veio contar a sua versão dos factos. Mas, e se nada tivesse sido filmado? Ou se as gravações tivessem sido destruídas? Nos Estados Unidos, houve quem já tivesse encontrado uma solução para que as denúncias não se percam pelo caminho.

Quando viu dois polícias a cercar Eric Garner, acusando-o de vender cigarros avulso nas ruas de Staten Island, nos EUA, Ramsey Orta puxou do telemóvel e começou a filmar. Não foi a primeira vez que registou momentos como este. Ele próprio, que tem um passado criminal e de problemas com a polícia, passou a fazê-lo sempre que era parado pelas autoridades ou via uma detenção. Alguns destes encontros podem ser vistos no seu canal de YouTube, cujos conteúdos são todos filmados com um telemóvel.

Neste caso em particular, o vídeo (que contém imagens chocantes) mostra Garner visivelmente irritado, enquanto pede aos polícias para o deixarem em paz. De resto, não demonstra sinais de agressividade. Ainda assim, a certo momento, um dos agentes põe o braço à volta do pescoço de Garner, ao mesmo tempo que os colegas se juntam para tentar deitar aquele homem alto, de 180 kg, no chão. E é no chão, com cinco polícias em cima dele e ainda a ser sufocado, que Garner começa a dizer: “I can’t breathe”. Não consigo respirar.

Só quando Garner repete a frase pela sétima vez é que Orta, sempre com o telemóvel na mão, diz: “Mais uma vez a polícia a bater nas pessoas”. Mas esta não foi “mais uma vez” qualquer. Eric Garner, que ainda conseguiu dizer “não consigo respirar” outras quatro vezes, acabou por morrer pouco depois. O vídeo filmado por Orta escapou a poucos e acabou por correr o mundo.

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Mas e se um dos agentes no local tivesse pegado no telemóvel e tivesse conseguido apagar o vídeo ou até destruir o aparelho?

É para evitar que isso aconteça que a American Civil Liberties Union (ACLU) criou a aplicação de Mobile Justice, disponível em iOS e Android desde o início de maio. Existem cinco versões diferentes, cada uma adaptada para um estado norte-americano. É de uso fácil: basta começar a filmar com a Mobile Justice ligada. No caso de algum agente querer intrometer-se na gravação, um simples toque no ecrã é suficiente para que o ficheiro seja enviado diretamente para a ACLU. Depois, se conseguir, o utilizador é convidado a fornecer mais informação em relação àquilo que acabou de registar: local, número de pessoas envolvidas, graduação do polícia envolvido, etnia da suposta vítima, etc. Se achar que o vídeo demonstra um caso de violação de direitos civis, a ACLU compromete-se a analisar a situação e a contatar todos os envolvidos no incidente.

https://www.youtube.com/watch?v=zrjJI1bBalM

“Nalguns sítios já se tornou instintivo começar a filmar a polícia assim que há uma interação com eles”, diz ao Observador Peter Bibring, advogado na ACLU e um dos responsáveis pela aplicação que foi lançada no início de maio.

“Toda a gente tem uma câmara com eles, portanto o desafio aqui não é filmar a polícia, mas sim garantir que ninguém faz desaparecer o vídeo e que ele vai estar disponível para mais pessoas poderem vê-lo”, diz-nos numa entrevista por telefone. Bibring refere-se a um caso recente na Califórnia, onde uma mulher que filmava a polícia por perto viu o seu telemóvel a ser atirado violentamente contra o chão por um agente. O incidente ficou conhecido por, lá está, ter sido filmado por um segundo dispositivo sem o conhecimento das autoridades no local.

https://www.youtube.com/watch?v=O-J-6SkuKJ0

Para o advogado da ACLU, a premissa em que a aplicação assenta não é a de que “a polícia fará sempre algo de mau”. “Antes pelo contrário”, defende-se. “Ela serve para documentar aquilo que a polícia faz para que o agente em questão possa ser responsabilizado se fizer algo que não é correto”, diz, com um ênfase no “se”. Por isso, a premissa é a de que “as pessoas têm de responsabilizar o governo por aquilo que este faz”.

“Governo” e “polícia” surgem no discurso de Bibring várias vezes como se de sinónimos tratassem, mas é o próprio que aponta a diferença entre uma coisa e outra.

“No governo e no senado, as pessoas são responsabilizadas. Há um historial dos votos de cada um daqueles que tomam as decisões que nos afetam diretamente. Mas isso não acontece com a polícia. A polícia exerce a sua autoridade tremenda nas ruas, fora da vista da maior parte de nós, portanto é difícil sabermos todos o que é que eles fazem exatamente. E sempre que há uma queixa por agressão policial, temos de nos basear na palavra do polícia e da suposta vítima. Exceto, claro, se houver um vídeo.”

Eric Garner está longe de ser o único cuja morte durante uma intervenção policial foi filmada por um telemóvel. Só entre fevereiro e abril de 2015, foram feitos pelo menos quatro vídeos de pessoas que perderam a vida numa ocasião deste tipo nos EUA. Todos homens — três negros e um hispânico. Um deles morreu após um ataque de um cão-polícia e os outros três com tiros de pistola. Nenhum tinha armas de fogo. Walter Scott, uma das vítimas, fugiu de um agente depois de este o agarrar por ter partido o farol de um carro. Quando se conseguiu soltar, correu de costas voltadas para o agente. O homem de farda, com a arma em riste, disparou oito vezes na sua direção, até que o matou.

https://www.youtube.com/watch?t=254&v=ym4tE0SQCZY

Menos de um mês depois de ter sido lançada, a aplicação Mobile Justice já foi descarregada por mais de 60 mil pessoas. Até agora, ainda não foi submetido nenhum vídeo que retratasse uma situação clara de agressão policial. Mas esse não é o objetivo principal deste projeto, explica Bibring.

“O que nós queremos é educar as pessoas para que estas percebam que têm o direito de filmar a polícia. Ao mesmo tempo que filmar a polícia já se tornou um reflexo para algumas pessoas, há muitas mais que não conhecem bem os seus direitos. A nossa constituição consagra a liberdade de expressão e isso inclui vídeos e fotografias. Todos temos o direito de filmar em locais públicos”

Segundo um estudo do Pew Research Center de 2014, 90% dos adultos norte-americanos têm telemóvel e 56% têm um smartphone.

Em dezembro, o Presidente norte-americano Barack Obama defendeu o uso de câmeras por parte de todos os agentes policiais, para que as suas interações com o público fossem registadas — este método já é utilizado, mas num número muito reduzido de esquadras. Uma delas, a de Rialto, na Califórnia, registou uma queda de 88% nas queixas por agressão desde que as autoridades passaram a trabalhar com estes dispositivos. Ainda assim, a aspiração de Obama foi bloqueada na quarta-feira pelo Congresso, de maioria republicana, que aprovou um orçamento para as forças de segurança que não prevê a aquisição destes aparelhos.