Ricardo é músico, mas começou cedo a trabalhar em livrarias. Tinha 20 anos. Cresceu em volta dos livros, e há mais de uma década que vive deles, para eles. A vontade de criar um alfarrabista a que daria o nome de “Sr Teste” é recente, tem pouco mais de três anos, mas foi uma vontade que lhe alterou a vida e os dias.

Nem quinze dias passados sobre o surgimento da ideia, inaugurou um blogue, trouxe a si os amigos, os leitores, e os leitores que entretanto se fizeram amigos, trouxe a si uma vida de livreiro, e criou um alfarrabista sem paredes, sem estantes, sem balcão. “Cansei-me. Cansei-me de ver o livro ser tratado – de eu próprio tratá-lo – como um negócio, algo de somenos valor, em que te dizem o que tens de vender, quando e quanto tens de vender, em que o leitor não tem querer, não vai opinar, e ‘come’ o que lhe dão. Cansei-me disso. O que fiz foi um ato ideológico. Ser-se crítico, valorizar a tradição, valorizar o livro, ter escolha, dar o que escolher, é um ato profundamente ideológico.”

“Se eu for a uma feira e encontrar um livro do Herberto Helder a cinco euros, não vou vendê-lo a cem. Eu não quero vender uma ‘Comunidade’ do Luiz Pacheco por ano, e lucrar cinco vezes o que paguei por ela. Se eu fizer um bom negócio, o leitor faz um bom negócio.”

Conversámos no bar da Sociedade Guilherme Cossoul, em Santos, onde, no rés do chão, o “Sr Teste” hoje mora, e para onde Ricardo trouxe os tantos livros que lhe atulhavam a casa. Foi em setembro que se mudou para cá. Sentado connosco está Fábio, 27 anos, que partilha o exíguo espaço da livraria com Ricardo e com Débora, outra livreira. Tal como Ricardo, também eles derivaram da blogosfera, onde tinham (e têm) o alfarrabista “ennui”.

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“A vinda para a Guilherme Cossoul partiu de um convite do editor da ‘Artefacto’, que eu já conhecia do tempo em que trabalhava em livrarias, e que me acompanhava (e à “ennui” do Fábio e da Débora) no blogue. Não é que nós não estivéssemos bem só com o blogue. Mas a mudança para a Guilherme Cossoul também foi ótima para que nós conseguíssemos contactar de um modo mais direto com o leitor; saber o porquê de se interessar por um determinado autor, por um determinado livro, discutir o autor, discutir o livro. Também foi a curiosidade que me fez aceitar o convite.”, explica Ricardo.

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Ricardo Ribeiro recebe diariamente no Facebook e no blogue pedidos de leitores. “Servir os outros é uma honra do caraças!”, confessa.

O serviço de alfarrabista que o “Sr Teste” e a “ennui” propõem não é de todo o convencional. Dizem-se, por graça: “personal alfarrabistas”. Mas o que isso? “O que nós fazemos é “book hunting”. É estar ligado a outros alfarrabistas, ir comprar a bibliotecas particulares, ir comprar a mercados de rua, e encontrar o livro que o leitor procura. Mas isso não é uma novidade – a “Letra Livre” fê-lo bem antes de nós, a “Pó dos Livros” também o faz. A novidade é que a nossa rede não é a dos alfarrabista em Lisboa, é maior, bem maior, nós vamos a todo o país e ao estrangeiro, vamos a todos os cantinhos, para encontrar o livro.”, descreve Ricardo. Fábio interrompe-o: “…Sim, também é isso, mas não é só isso. Muitas vezes um leitor pergunta-me o que eu penso de um livro, e eu digo-lhe que não é um bom livro, ou que não é o livro que ele procura. Se eu pensar bem no que estou a dizer, é o tipo de abordagem que numa Bertrand ou que numa Fnac dá direito a despedimento na hora. [Risos] Por outro lado, e isto está sempre a acontecer-me, se eu encontro um livro que pressinto que um leitor vai querer, não o divulgo no blogue, ligo-lhe logo, e são raras as vezes em que o leitor não fica com ele. Ser-se “personal alfarrabista” também é isso: é conhecer o nosso leitor.”

“Não se trata de saber se há espaço para nós no mercado. Trata-se de saber se há espaço fora dele.”

O negócio dos alfarrabistas é um negócio onde tende a falar-se de especulação. Há livros que são vendidos por um valor muito superior ao real, e em que a venda pode mesmo ultrapassar a centena (às vezes o milhar) de euros. Não falamos de incunábulos, raros, mas de Herbertos e Pachecos, não tão raros. E também disso o “Sr Teste” se quer diferenciar. “Se eu for a uma feira e encontrar um livro do Herberto Helder a cinco euros, não vou vendê-lo a cem. Eu não quero vender uma ‘Comunidade’ do Luiz Pacheco por ano, e lucrar cinco vezes o que paguei por ela. Se eu fizer um bom negócio, o leitor faz um bom negócio.” Mas, voltando a Herberto: “Se há um livro dele que, mal sai, e é logo avaliado em 150 euros, como o Fábio viu, eu prefiro nem ter esse livro. E se o faço, faço-o para me salvaguardar como alfarrabista, para salvaguardar o livro, o leitor, e, sobretudo, os meus leitores”, critica Ricardo.

Mas há espaço no setor livreiro para um negócio como este? “Eu penso que não se trata de saber se há ou não espaço para o que nós fazemos. A problemática é outra: é saber se há espaço fora do mercado. É um trabalho de resistência.”, conclui Fábio. O livreiro da “ennui” crê que ser alfarrabista, hoje, é viver-se em deslumbramento, mas não deslumbrado. “A Fiama [Hasse Pais Brandão] fala em olhar com deslumbramento. Eu tenho por hábito ir para a montra da livraria e olhar através dela. Sabes o que é que me deslumbrou? A árvore ali à frente, que, no espaço de um mês, passou de não ter verde nenhum para estar completamente verde.” O deslumbramento pode ser o movimento de uma árvore, como a descoberta de um livro raro, como a chegada de um livro novo, de uma editora nova. “Um dia chegaram uns livros da “Sistema Solar” e nós parecíamos uns miúdos deslumbrados com o que lá vinha. Claro que há que ganhar o pão do dia. Mas é o deslumbramento que nos faz continuar”, explica.

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Há leitores – Ricardo trata-los por leitores, e não clientes – que pedem um livro ocasionalmente e retornam; há leitores que lhe entregam uma longa lista de obras que querem; há colecionadores que lhe confiam o caceio da sua vontade em colecionar mais e mais. Mas todos sabem que no “Sr Teste” não há prazos para a entrega. Um livro pode demorar uma semana a ser descoberto, ou, tantas vezes, meses.

A procura está cada vez mais eficaz. “Eu encontro com facilidade as primeiras edições, os livros raros. Servir os outros é uma honra do caraças! Quando sou bem servido numa livraria, num alfarrabista, ou onde for, eu sei que não estão só a vender por vender, a olhar ao preço, mas estão a passar-me um testemunho. A missão alfarrabista é passar um testemunho.” Ricardo relembra um episódio recente: “Um dia fui a uma biblioteca pessoal, e encontrei o ‘Retrato em Movimento’ do Herberto Helder. Falei dele de novo!? [Risos] Enfim… Não comentei com ninguém que o tinha encontrado. Levei-o para casa, estive a curti-lo, claro, e fui-me deitar. No outro dia de manhã tinha uma mensagem de um leitor – um miúdo de 25 anos absolutamente incrível –, que me diz que está à procura do ‘Retrato em Movimento’.” Herberto tinha morrido dias antes. “Os livros dele vendiam-se, sei lá, a três ou quatro vezes mais do que o que era habitual – e o habitual já era venderem-se a três ou quatro vezes mais do que o que eu vendo. Sabes o que fiz? Vendi-lho. Ele não tinha muito dinheiro, mas vendi-lho. Não faz sentido ver isto só como um negócio, o lucro pelo lucro. Se fosse pelo lucro, abria um restaurante gourmet”, conta.