Um grupo de turistas chineses cruza as Escadinhas de São Cristóvão, transversais à Rua da Madalena, na Baixa lisboeta, colina acima, para chegar ao Castelo de S. Jorge. O guia turístico que os traz, pára à sombra do arco de São Cristóvão, e recorda-lhes que é logo ali, à direita, que se encontra a livraria mais pequena do mundo: a “Livraria do Simão”.

There it is, Simon’s Bookstore, the world’s smallest bookstore! It’s in Guinness World Records, sir!

Segue-se mais uma série de historietas, mais ou menos mirabolantes, sobre o lugar, para inglês ver. Ou melhor, chinês ver. E logo tratam, os turistas, de sacar da sua parafernália de máquinas fotográficas, telemóveis, câmaras de vídeo, flashes, tudo, para registar, do lado de fora — que lá dentro mal cabe o livreiro, quanto mais um grupo de vinte ou trinta chineses e suas maquinetas e mochilas –, o momento. Fotografias tiradas, e eis que seguem rumo ao Castelo. Paulo Simão, o livreiro, não gosta muito do epíteto que lhe calhou em sorte.

8 fotos

“A fotografia da livraria deve ser, hoje, uma das fotografias mais mediáticas de Lisboa. E digo-o sem ponta de vaidade. Criei um monstro maior do que eu, que é autónomo, quase orgânico, e eu sou só um tipo que vive nele e dele, mas em segundo plano”, explica, entre risos. “Quanto ao facto de ser ou não a livraria mais pequena do mundo, eu nunca me referi ao espaço dessa forma, como direi, sensacionalista. Mas é curioso, que foram os próprios guias turísticos que lhe colocaram o rótulo, mas, com o tempo, o rótulo foi mudando. Já foi a livraria mais pequena do mundo, agora é a segunda mais pequena do mundo, só atrás de uma alemã. Enfim.”

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A história do nome também é curiosa. “Perguntam-me porque se chama ‘Livraria do Simão’, mas eu não lhes sei responder. Eu detesto nomes. Detesto dar nomes às coisas. Detesto. Pensei em chamar-lhe ‘Trieste’, que é uma obra de um poeta e tradutor italiano de quem eu gosto muito, o Umberto Saba, que também é livreiro e tem uma pequena livraria. Até cheguei a publicitar o nome ‘Trieste’. Mas ficou ‘Livraria do Simão’. Se um gajo disser que foi à livraria do Simão, ou que vai à livraria do Simão, é pessoal, é como se não tivesse um nome.”

Foram os próprios guias turísticos que lhe colocaram o rótulo, mas, com o tempo, o rótulo foi mudando. Já foi a livraria mais pequena do mundo, agora é a segunda mais pequena do mundo, só atrás de uma alemã. Enfim.”

O espaço é mínimo, quase claustrofóbico. Simão, lá dentro, só cabe de lado e, a custo, senta-se ao computador, num dos cantos. À soleira da porta, guarda, empilhados, dezenas de livros, que retira do interior quando chega, para se movimentar lá dentro. Fala-nos das raridades que por lá guarda. “Tenho umas quantas primeiras edições. Tenho ali uma do Cesariny, tenho um belíssimo exemplar [luminações e Uma Cerveja no Inferno, de 1972] do Rimbaud, que foi o Cesariny quem trouxe para Portugal, quem o traduziu. Também tenho o Stendhal, o Withman, o Walt Withman, também em primeiras edições, muito boas.”

Diz que lhe custa desprender-se delas. Cada vez menos. “Há dias em que os livros são a coisa mais importante da minha vida. Há dias em que não. Mas já não me custa desprender-me de um livro. Até porque muitos dos clientes são meus amigos, tornaram-se meus amigos, e sei que eles querem o livro, precisam do livro, e que, entregando-lhes o livro, não o vou perder, mas partilhá-lo. O meu sentimento hoje é o do desprendimento. Claro que há livros pelos os quais eu tenho uma certa estima, e quando chega aqui um gajo e mo leva, eu digo, olha!, lá vai mais um.”

O livreiro mais novo da Baixa, que só foi para a Baixa “por acaso”

Paulo Simão, ou melhor, Simão, que é como prefere ser tratado, tem 40 anos, e chegou a Lisboa há oito, vindo de Paredes, nos arredores do Porto. Dizia-se dele, na altura, quando chegou e inaugurou a livraria, que era o livreiro mais novo da Baixa lisboeta — outro epíteto que rejeita e que não sabe de onde surgiu. “Já trabalhei com uma petrolífera, fui professor de Física e Química. Formar-me, formei-me foi é em Enologia, no estudo da produção e conservação de vinhos. Mas, a certa altura na minha vida, os livros impuseram-se a tudo o resto.”

A relação com os livros, a primeira relação, mais profissional e não só como leitor, foi através do contacto que foi fazendo com editoras, que depois ia representar em feiras do livro. Resolveu abrir a livraria por uma vontade, talvez utópica, diz, de tentar ser livre. Uma vontade que não se mostrou tão utópica quanto isso. “Eu sou um gajo livre. Não devo obediência a ninguém. Mas ser livre não significa não ser disciplinado. Ou organizado. Isto exige de mim muita disciplina e muita organização. Ser livreiro independente é um trabalho sem rede. Há que ter a perfeita noção de que os livros não são um bem de primeira necessidade. Ninguém compra um livro por necessidade. Há dias em que não vendo um livro que seja. Mas estou cá, de manhã à noite, o dia todo. Se o fizeres por paixão, se o fizeres por prazer, todos os contratempos, todas as dúvidas, são imediatamente dissipadas.”

Não procurava um espaço tão pequeno. Diz que foi um acaso. Até porque, na Baixa, onde também vive, a escolha não era muita. “Não havia nada. Certo dia, vou eu a passar aqui pela Rua da Madalena, e vejo afixada uma informação de aluguer. Fui falar com o dono do prédio – que é também o dono da loja –, e o tipo diz-me que isto só tem 3,8 metros quadrados e que só teve comércio há 50 anos, como quiosque. Nem ele se recordava bem. Mas eu gosto de espaços com memória. O Manoel de Oliveira rodou aqui o filme ‘A Caixa’, em 1993.”

Foi conhecer o espaço e, quando entrou, bateu, quase literalmente, com a cara na parede. “Tudo o que vês aqui, as prateleiras, tudo!, foi tudo idealizado por medida – e tive que retirar uma série de entulho de cá de dentro. Mas, pouco a pouco, o espaço foi-se criando, foi-se impondo, naturalmente, e comecei a acreditar que era possível ser uma livraria. Pequena, mas uma livraria.”

Não gosta que o chamem alfarrabista. “É uma palavra dura, custa-me dizê-la, acho que é feia o raio da palavra. Prefiro o termo livreiro. É isso que eu sou. Sim, eu vendo livros usados, maioritariamente, mas vejo-me como um livreiro.” Guarda dezenas de milhares de livros em casa. São livros que já tinha, outros que foi comprando a amigos, a outras livrarias ou a outros alfarrabistas, também os compra a particulares, que têm bibliotecas pessoais e se querem desfazer delas, e, claro, há quem por aqui passe e lhe traga livros para vender. Uma coisa que não faz é comprar o que as editoras têm em catálogo, as novidades.

Eu sou um gajo livre. Não devo obediência a ninguém. Mas ser livre não significa não ser disciplinado. Ou organizado. Isto exige de mim muita disciplina e muita organização. Ser livreiro independente é um trabalho sem rede.

“Eu só tenho o que leio e só vendo o que gosto. E como tanto leio em português, como em francês, espanhol, alemão ou italiano, tenho livros em muitas línguas, de história, literatura, filosofia, tudo. Também vendo livros em mandarim, mas mandarim já não leio. [Risos] Isto é um trabalho, o trabalho de livreiro, muito idiossincrático. É o teu gosto pessoal que vai definir o teu modelo de negócio. É claro que eu sou atento ao que o mercado quer, ao que me solicitam. Também sei bem que se comprar coisas mais comerciais, em detrimento de coisas menos comerciais, vou vender mais, mais rapidamente, e isso traduz-se em lucro. Mas, mais do que usar a livraria para sobreviver — e eu preciso dela para sobreviver –, uso-a como que num exercício de liberdade e de prazer.”

Quem lhe compra os livros, maioritariamente, são os turistas, que vão de visita ao Castelo. Lisboetas, lisboetas, da Baixa, não, até porque, infelizmente, confessa, já quase não há lisboetas a habitar na Baixa, e isso é “uma dura e galopante realidade”. Por outro lado, e cada vez mais, o negócio de venda de livros de Simão faz-se via internet. “Não tenho paciência para ter um blogue ou uma página nas redes sociais, mas utilizo as plataformas de venda, as internacionais, como o eBay, por exemplo, e vendo para todo o mundo. Mas não é por isso que digo que as livrarias pequenas vão desaparecer e que o livro vai desaparecer. Eu penso que, no futuro, muito em breve, o mercado livreiro vai ser um mercado fragmentado, um mercado de nichos, e é por isso que, creio, vai haver espaço para os pequenos livreiros. Os livros, físicos, vão perdendo expressão, há outros formatos que se impõem, mas eu creio que o livro, o objeto, não vai desaparecer nunca.”