Era uma vez um rapaz chamado Brian Wilson que ouvia sons dentro da cabeça, cacofonias inexplicáveis. Essa massa sonora era transformada nas irresistíveis e esfusiantes canções “praia-surf-e-garotas” dos Beach Boys. Mas o rapaz não se queria ficar por aí. Queria fazer música mais “séria”, queria ir até aos limites da melodia, da harmonia, das letras e fazer combinações nunca ouvidas entre elas. Queria tocar o estúdio de gravação como se fosse um instrumento musical, incorporar nas canções os latidos dos seus cães, os deslizes dos músicos, as conversas gravadas durante os ensaios ou nos intervalos. Tudo isto perante a perplexidade ou a oposição dos outros membros da banda. Mesmo assim, o rapaz produziu obras-primas, “sinfonias de bolso” como “Good Vibrations”, “God Only Knows”, e o álbum “Pet Sounds”.

https://youtu.be/d8rd53WuojE

Os Beach Boys em estúdio

E depois de um disco experimental que foi para a gaveta, “Smile”, o rapaz soçobrou às drogas e a uma doença mental incorrectamente diagnosticada. Largou a música, passou três anos fechado no seu quarto e ficou sob tratamento, e sob a tutela legal, de um sinistro psicólogo e psicoterapeuta, Eugene Landy, que o encharcou em medicamentos e manteve mais vigiado do que um prisioneiro político. Tudo parecia correr mal para o génio musical, quando foi salvo por uma ex-modelo e vendedora de automóveis, Melinda Ledbetter. Com a ajuda da família, tirou-o das garras de Landy, devolvendo-lhe a confiança e a autonomia, e casou com ele. Tiveram cinco filhos e o rapaz voltou a compor e a tocar.

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A vida do líder dos Beach Boys podia ter dado um daqueles filmes biográficos de juntar por números e puxar à desgraça e à edificação, feito por um qualquer borra-botas de Hollywood. Felizmente, o autor de “A Força de um Génio” (“Love and Mercy”, no original), Bill Pohlad, um produtor (de “A Árvore da Vida”, de Terrence Malick, entre outros), que aqui se estreia a realizar, além de grande fã do lendário grupo, não é desses.  É por isso que estamos com os olhos (e os ouvidos) num dos melhores filmes de sempre baseados na vida de um músico.

“Trailer” de “A Força de um Génio”

Escrito por Michael Allen Lerner e Oren Moverman (co-autor de “I’m Not There”, de Todd Haynes), e com banda sonora de Atticus Ross, habitual colaborador de Trent Raznor e David Fincher, “A Força de um Génio” está isento das convenções, facilidades, piedades e simplificações do género “biografia-de-génio artístico-que-não-bate-bem-da-bola”, e assenta num conceito arriscado.

Brian Wilson é interpretado por dois actores, cada um para uma fase da sua vida. Paul Dano na fase dos Beach Boys, John Cusack na fase da doença e do isolamento. (Pohlad chegou a pensar num terceiro actor, que seria Philip Seymour Hoffman, para fazer de Wilson durante os anos de reclusão, mas acabou por desistir, e essa fase é o “ângulo morto” do filme). E resulta? Se resulta, visual, dramática e narrativamente. E apesar da pouca parecença física entre ambos, há ecos, sintonias, associações entre o Wilson de Dano e o de Cusack, que o realizador usa para mostrar que tudo aquilo por que o músico passou o transformou realmente noutra pessoa, embora tenham ficado vasos comunicantes com o outro que ele foi.

Entrevista com Paul Dano, John Cusack e Elizabeth Banks

“A Força de um Génio” é um filme de uma enorme inteligência e delicadeza sonora e cinematográfica, na sugestão das visões auditivas de Brian Wilson e na subsequente e como que miraculosa tradução em música, sozinho ao piano ou em estúdio; na recriação o mais perto possível das sessões de gravação; na forma elíptica como mostra o seu deslize para as drogas e a queda no buraco negro da perturbação mental; e na recusa de encharcar em melodrama ou em sensacionalismo o encontro de Wilson com a futura mulher, e a batalha de vontades entre ela e Landry para anular o poder deste sobre ele e devolver o músico a uma vida o mais normal possível. Bill Pohlad dá-lhe uma qualidade visual que remete a espaços para as imagens de arquivo a cores da utopia estival e musical da Califórnia dos anos 60, para a textura dos “home movies”, para a pintura de David Hockney durante os anos californianos ou para uma espécie de quase impalpável “realismo onírico” que encontramos nalguns filmes de David Lynch.

Entrevista com Bill Pohlad

Brian Wilson ao vivo em 2009

Os actores são pouco menos que brilhantes. O rechonchudo Paul Dano serve como uma luva no Brian Wilson de “antes”, relutante à exposição pública e às digressões, funcionando ao som de uma música que só ele ouve, secretamente magoado com a insensibilidade de um pai chupista e a incompreensão dos outros Beach Boys. John Cusack em sofrimento com silenciador no Brian Wilson de “depois”, delicado, assustadiço, frágil como um cristal, consciente da sua situação mas incapaz de se libertar sozinho dela. Paul Giamatti excelente num Eugene Landy de capachinho ridículo, falinhas mansas e saboreando o seu poder totalitário de rosto benigno sobre Wilson. E Elizabeth Banks, sem forçar qualquer nota melodramática para captar o nosso capital de simpatia, na salvadora Melinda Ledbetter. Brian Wilson não podia imaginar como o refrão “God only knows what I’d be without you” da canção homónima viria a aplicar-se a ela. E graças a “A Força de um Génio”, passamos a ouvir a tão familiar música dos Beach Boys com outros ouvidos.