Madalena, 44, sempre teve o desejo de ser independente. Ter uma casa e vida próprias e construir uma carreira a sangue e suor eram sonhos sem data. De tanta ambição nasceu outra, a de viver por conta própria, coisa que faz há 12 anos numa casa decorada a gosto nos arredores da capital. Vive sozinha como sempre viveu, mesmo namorando com aquele que diz ser o homem certo. “Hoje em dia está tudo tão institucionalizado na minha vida — a rotina, os horários –, que não sinto que tenha de dar esse passo”, explica ao Observador, referindo-se ao facto de não viver com quem ama.

É caso para dizer que há ditados populares que, com o tempo, conhecem o seu prazo de validade. Não é tanto uma questão de extinção, antes de atualização: nos dias que correm, há quem argumente “um amor e duas cabanas”, o que reflete um tipo de compromisso longe do que manda a tradição. O que é isto, então, de casais que vivem separados, cada um no seu lar?

“Aqui há um compromisso, uma relação assumida que assenta na fidelidade. Mas em vez de dormirem numa só casa, vão variando”, explica Fernando Mesquita, para quem o conceito em questão é uma realidade mais frequente do que, à partida, se poderia julgar. Ao consultório do sexólogo, em Lisboa, chegam diferentes casais que partilham o amor mas não as moradas fiscais: é o caso dos vizinhos que se apaixonaram e que, a certa altura, discutiam sobre as despesas da água (porque ele passava mais tempo em casa dela) ou da mulher que precisava de estar sozinha em casa, sem o companheiro, de modo a carregar as energias.

Há cada vez mais relações que adotam um mesmo perfil, garante Mesquita, que vê com bons olhos estes romances. “Acredito que uma pessoa se possa dar de corpo e alma mas que, talvez, não queira entregar os bens”, atira. Não é que esta seja uma evolução da ideia do casamento tradicional, antes outra forma de viver a dois. É um namoro e, em muitos casos, algo mais sério, embora em moldes diferentes dos habituais. O importante é que as regras estejam bem definidas desde o início.

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Amor a dividir por duas casas. Porquê e como funciona?

“É sobretudo uma escolha, uma escolha de viver uma relação de compromisso, de modo não convencional, mas de acordo com aquilo que consideram ser o caminho a percorrer e que os faz sentir melhor. É uma escolha diferente”, diz Margarida Vietiez, mediadora familiar.

Em causa está, sobretudo, uma relação onde os intervenientes não querem entrar a pé juntos, em pleno golpe de fé — pelo menos no que a áreas comuns diz respeito. A segunda casa funciona, então, como uma espécie de porto de abrigo, explica Fernando Mesquita, que defende que estas relações acabam por ser exatamente como as outras, apesar de existirem poucos espaços em comum.

Margarida Vietiez, por sua vez, afirma que tudo não passa de uma decisão tomada a dois, com diversas razões a servirem de âncora para uma situação que, aos olhos da sociedade, poderá ser menos consensual: “Quando existe uma decisão nesse mesmo sentido, as razões apontadas pela maioria dos casais são a ‘proteção’ do espaço e tempos individuais, a ideia do ‘ver o que vai dar’, o não querer casar, os medos e receios provocados pelas anteriores experiências amorosas, a existência de filhos, de uma ou de ambas as partes, e muito especialmente o manter o clima de romance e paixão, evitando o desgaste da pesada rotina”.

Em cima da mesa estão as máximas da privacidade e do espaço próprio, tidas como uma receita pouco usual para o sucesso de um casal. Mas há uma tónica muito específica que ajuda a compreender estes cenários, isto é, a necessidade de evitar criar dependências e sentir continuamente que existe controlo sobre a vida de cada um.

Quando duas pessoas escolhem ter uma relação, ainda que debaixo de tetos diferentes, tal pode revelar ainda um medo de compromisso, diz a mediadora. Isto acontece sobretudo quando na equação pouco matemática estão casais que já passaram por uma ou várias experiências menos positivas, pelo que optam por viver em casas separadas durante um tempo.

“Tenho conhecimento de muitos casais que decidiram escolher viver em casas separadas, mesmo depois de já terem estado a viver juntos, e estão muito bem. Muitos outros viveram separados e, depois de um bom tempo, cansaram-se de fazer a mala ao fim de semana e decidiram fazer a mudança para casa de um ou de outro”, explica a mediadora familiar.

“Há a ideia de liberdade”, completa Fernando Mesquita. Quer isto dizer que as pessoas escolhem passar tempo uma com a outra e definem os momentos que passam consigo próprias. “São pessoas que gostam da privacidade e que respeitam a individualidade, mas que procuram também evitar um pouco a rotina e a monotonia, sempre com a ideia de que podem voltar para casa.” Em última análise, falamos de indivíduos que procuram o melhor de uma relação amorosa; e não é a quantidade de tempo que está em causa, mas sim a qualidade.

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Da teoria para a prática 

Voltemos a Madalena, a profissional na área da comunicação que namora com um homem de 39 anos há 24 meses. Tanto ela como ele nunca partilharam casa própria (com quem quer que fosse), preferindo sempre viver o romance à distância de uma porta.

“Estou tão habituada a esta dinâmica e a minha vida é tão irregular em termos de horários… É uma coisa que está automatizada”, explica Madalena, não sem antes admitir que ela e o namorado vão alternando as dormidas, mas que nunca dividem a mesma cama durante um mês inteiro — o máximo terá sido uma semana seguida, isto sem contar com os períodos de férias.

Para Madalena, esta é uma forma de o casal não entrar em rotina, além de ser um sinónimo constante da compreensão pelo espaço de ambos. “Não há menos amor. São ritmos de vida diferentes”, alega, dizendo que a decisão resulta de uma combinação de fatores: do saber respeitar, da idade e experiência de vida. “É prático. Acho que as pessoas estão numa fase da vida em que sabem o que querem, sobretudo quando há um historial de viverem sozinhas.”

Esta não é a primeira incursão de Madalena no universo do romance que se prolonga por duas habitações. Antes do atual namorado, a profissional de comunicação teve uma relação de dez anos, com quem nunca chegou a viver por motivos diferentes dos que apresenta hoje: “Éramos muito jovens. Estávamos na faculdade quando começámos a namorar e nos primeiros anos não havia autonomia financeira. Foi um relacionamento que foi crescendo, passávamos muitos fins de semana fora e essa necessidade não se impôs logo.” Na altura de tomar a respetiva decisão, o casal ponderou não só se valia a pena partilhar uma vida 24 horas sob 24, mas também se ainda queria estar junto — a resposta foi negativa.

Mas há quem, depois de anos separados, escolha arriscar viver sob um mesmo teto e aproveite a conjuntura económica para facilitar a aventura. É o caso de Francisco*, 35, que trabalha na área do entretenimento, tal como a namorada, com quem tem uma relação há quatro anos. Depois de tanto tempo em casas próprias, o casal decidiu ir viver junto há dois meses, uma viagem que ainda agora começou e que, ao que tudo indica, está a correr bem.

Ao Observador, e ao contrário do que se poderia pensar à primeira, Francisco indica motivos económicos para justificar o facto de não ter ido viver antes com a namorada, apesar de admitir que sempre gostou muito de ter o seu próprio espaço: “Do ponto de vista económico era difícil ter casa em comum. Sendo freelancer preciso de muito espaço para trabalhar e a casa dela não o tinha”, explica. Além disso, os trabalhos de ambos eram (e continuam a ser) precários e havia empréstimos de casas para pagar.

Apesar das dificuldades, conseguiram encontrar um equilíbrio e encontravam-se sempre que podiam. “Não deixámos de ter uma boa relação, nunca tivemos discussões por causa disso. Até falávamos sobre isso e tínhamos plena consciência que seria difícil suportar o custo económico.”

A vida a dois mudou quando o turismo irrompeu pela capital adentro. Hoje, não só partilham o mesmo teto lisboeta como têm as respetivas habitações a arrendar: “É ótimo. Estamos a construir uma casa juntos, a decorá-la, a torná-la funcional. Faz parte de quando se gosta de uma pessoa e a vida fica mais fácil”, garante Francisco.

Sobre essa etapa Madalena também tem uma opinião: “Eu não ponho de lado a hipótese de viver com ele, mas não digo que isso seja necessário para a minha relação ser boa. Não digo que não seja a cereja no topo do bolo, mas o bolo já é espetacular.” Para ela existem demonstrações de afeto de maior relevância, tal como a lealdade — “Antes de vivermos juntos tem de existir uma base sólida de valores e, hoje em dia, há coisas que se esquecem.”

Há vantagens em ter duas cabanas?

Os benefícios de “um amor e duas cabanas” parecem ser muitos, segundo os intervenientes, desde a tão desejada intimidade à sensação de eterno romance. Mas há mais vantagens, avança a mediadora familiar. Afinal, esta é também uma questão de:

  • Tempo e espaço próprios;
  • Menor desgaste da relação com os problemas que advêm da partilha de tarefas;
  • Possibilidade de não ser ‘contagiado’ com as energias menos positivas do companheiro;
  • Controlo da vida pessoal e tomada de decisões unilaterais relativas à gestão financeira;
  • Não invasão da intimidade;
  • Conhecimento recíproco, crescimento a dois e evolução da relação, para posterior tomada de decisão de viver juntos ou mesmo casar.

À lista, o sexólogo Fernando Mesquita acrescenta que, nestes casos, as exigências que um membro do casal faz ao outro são consideravelmente menores — exemplo disso é o facto de existir maior “permissão” para que o outro esteja mais vezes com os amigos, o que poderá ser mais difícil de acontecer em contexto de casamento.

Mas também há problemas no paraíso, até porque com o passar do tempo, uma das pessoas do casal pode sentir uma necessidade crescente em partilhar o espaço com a outra — perante tal cenário, as coisas tendem a complicar-se, garantem Vietiez e Mesquita, uma vez que as expetativas de um já não são as expetativas de outro.

O que é também difícil nestas relações são os momentos de solidão que podem existir de uma das partes. Ou, então, quando uma das pessoas é mais insegura ou ciumenta, o que significa que pode começar a questionar os moldes em que fundou a união com o/a companheiro/a. E quando há filhos à mistura, é possível que os cenários sofram uma atualização e/ou uma mudança brusca.

Madalena, por exemplo, não esconde que até aos seus 25 anos pensou em casar, uma clara influência da tradição familiar e da educação católica que recebeu em pequena. Hoje em dia tem uma opinião diferente e admite que só consideraria o casamento se engravidasse, coisa que já não pondera à conta da idade. No entanto, não acha que a pureza de um sentimento se materialize numa viagem a dois ao altar, perante amigos e família.

Outra adversidade, se é que assim a podemos chamar, passa precisamente por aí, por uma sociedade que olha desconfiada para este tipo de relações e que, frequentemente, é feita de pessoas com línguas afiadas. “Apesar de as pessoas terem um compromisso sério, quem está de fora pode pensar que é uma coisa temporária, que são pessoas que não assumem a relação”, explica Mesquita.

“Acho que se constrói muito aquela ideia… Quando fui viver sozinha, as pessoas achavam estranho ter um namorado e viver sozinha. Mas se estou bem comigo própria… A mulher é sempre mais julgada do que o homem em determinadas coisas”, comenta Madalena, que refere ainda o facto de a sociedade, em geral, achar sempre que numa relação onde as pessoas não vivem juntas há muita “liberdade”.

Francisco concorda, apesar de nunca ter sofrido muito na pele com os preconceitos dos outros: “Havia pessoas a quem lhes fazia confusão, que iam logo viver com o namorado.”

Qual é o perfil destes casais?

Fernando Mesquita arrisca-se a dizer que as relações em questão acontecem sobretudo quando em causa estão casais algo recentes e que assumem que vão continuar em casas separadas durante algum tempo.

“Têm surgido cada vez mais casos, sobretudo de pessoas que já tiveram um casamento ou uma relação mais prolongada e que, por alguma razão, separaram-se e estão, agora, num novo compromisso. É um novo ciclo amoroso.”

Em causa estão pessoas a partir dos 40 anos (regra geral), que já tiveram a tal relação e que acham que qualquer outra não vai durar uma vida inteira: “São pessoas que podem ter tido desilusões na vida e que têm mais experiência nesse sentido, que sabem que as coisas não duram para sempre”, alega Mesquita. “Acho que são românticas, mas também mais cientes dos riscos da relação.” A isso acrescenta-se o facto de terem capacidade económica — só assim se consegue suportar uma casa própria e resistir mais facilmente à ideia de “juntar os trapinhos”.

E haverá algum entrave emocional de quem está nestas uniões? “Não apontava para isso. Isso somos nós a não acreditar nestas relações, e eu acredito. Isso seria metermos as coisas numa balança e dizer que as pessoas com casas em conjunto entregam-se mais e vice-versa”, conclui Mesquita, que recorda ainda uma situação oposta que vai ganhando terreno nos dias de hoje: “Também temos pessoas a viver na mesma casa e que, em comum, apenas têm a própria habitação, que não têm possibilidades económicas para sair de casa.”

“Nunca me arrependi de nada”, diz ainda Madalena. “Se voltasse atrás faria as mesmas coisas. Penso um pouco na questão da maternidade, mas também acho que não vai ficar um vazio. A minha vida tem sido tão rica… São opções.”

* Nomes fictícios. Estas pessoas não quiseram ser identificadas.