Antigos mercados tradicionais de Lisboa são hoje um quadro dos novos tempos, onde as cores das frutas e legumes e o apregoar dos vendedores partilham o lugar com a pintura moderna ou o ruído habitual dos espaços de restauração. Mas a tendência também chegou à Invicta: a reabilitação dos mercados do Bom Sucesso e Ferreira Borges, no Porto, foi feita “de forma exemplar” pelo antigo executivo camarário no modo em que antecipou a mudança dos tempos, disseram gerentes, arquiteto e empreiteiro contactados pela Lusa. A reabilitação de antigos mercados que apostaram em criar espaços de restauração já fizeram aumentar o número de visitantes entre 30 a 40%.

Na capital, bancas de vendedores de avental antigo misturam-se com a sofisticação das novas bancas de restauração ‘gourmet’, uma coexistência já consumado em Lisboa, Cascais e, mais recentemente, em Oeiras, no Mercado Municipal de Algés, e que agrada a quem vende e a quem compra.

A degradação do Mercado de Campo de Ourique foi a principal motivação da Câmara de Lisboa para concessionar aquele local e torná-lo mais atrativo. A funcionar desde novembro de 2013, o novo mercado é “um sucesso”, segundo um dos diretores do espaço, Frederico Lebre. “A adesão dos cidadãos a este novo conceito tem sido espetacular, o que prova que existem muitos espaços públicos que estão em deterioração e que podem vir a ser dinamizados e gerar novamente fluxo, não só para os novos comerciantes, como para os antigos”, sustentou.

Aos resistentes à mudança, Frederico Lebre lembrou que houve preocupação em “respeitar ao máximo” a tradição. “Mantivemos o novo conceito junto com o mercado tradicional. Além disso, tentamos que os consumidores dos restaurantes também consumam nos mercados tradicionais e a verdade é que, desde que inaugurámos este novo conceito, a faturação dos lojistas que já cá estavam aumentou consideravelmente”, frisou.

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Vendedora em Campo de Ourique há mais de 50 anos, Glória reconhece a mudança “para melhor”. “O mercado estava a ficar muito vazio e então havia ‘ruas’ que já não tinham comerciantes nenhuns. Esta ideia foi muito boa, porque veio para aqui muito turismo”, disse.

O agrado não é só de quem ali ‘mora’ há várias décadas, mas também dos que visitam o mercado pela primeira vez. “Maravilhoso. Venho do Brasil, de São Paulo, e lá há mercados mas não com esta diversidade, com estas cores e essa mudança [do tradicional para o moderno] é muito subtil. Consegue-se aproveitar o novo, mas sem perder o passado. É a minha perceção”, afirmou Carolina.

O conceito alargou-se há pouco mais de um ano ao Mercado da Ribeira, agora explorado pela revista Time Out, que agrega o mercado tradicional e uma praça de restauração e esplanada. “Temos dezenas de milhares de turistas todas as semanas e, portanto, não podia ser melhor”, afirmou o diretor, João Cepeda.

Quanto às vozes críticas, o responsável admitiu que as construtivas até são aproveitadas para melhorar. “Continuamos a ter o mercado concentrado numa zona nobre e a ter todos os vendedores no seu mercado de sempre. Conseguimos complementar isso com uma oferta que os turistas e os locais querem e que acaba por trazer pessoas ao mercado tradicional. Vozes críticas há sempre em todos os projetos, é normal, mas até nos ajudam a melhorar”, afirmou.

Jordi veio de Espanha com a família e quis mostrar-lhes o Mercado da Ribeira, um espaço que só conheceu depois de requalificado. “Não conhecia o mercado antigamente e só viemos porque já sabia que havia esta oferta culinária. É um espaço muito agradável e acho que é necessário a mistura para o turismo, para as pessoas conhecerem as tradições e terem algo moderno”, disse.

Mais recente, mas já com registo de sucesso, o Mercado de Cascais adotou a união do “antigo e moderno”, sob o mesmo pretexto de atrair mais visitantes. “O primeiro grande objetivo foi manter o espírito do mercado e de feira. Conseguimos. Paralelamente a isso, e porque era um espaço só visitado às quartas-feiras e sábados, era necessário trazer uma nova energia e por isso decidimos requalificar”, contou o vereador da Câmara de Cascais, Nuno Piteira Lopes.

A veia tradicional dos mercados antigos mantém-se “bem viva”, segundo o vereador, e os vendedores gostam. “Precisamos de mais clientes. Os eventos fazem falta, mas os clientes também. Deveria haver mais condições, mas com tempo tudo se fará. Eu acredito que o objetivo da Câmara é inovar e não prejudicar-nos”, afirmou Júlia, peixeira no Mercado de Cascais há 37 anos.

Os mercados (re)nascem em Lisboa… E claro, no Porto

Rodeado de esplanadas e repleto de bancas de vários tipos de restauração, o atual mercado do Bom Sucesso tirou partido de uma vontade, “por parte da Câmara Municipal da altura, de fazer algo diferente e que alterasse o perfil que estava a estabelecer-se naquela zona, de uma degradação acentuada que já não beneficiava ninguém”, considerou Arnaldo Figueiredo, vice-presidente da Mota-Engil, empreiteira da reabilitação iniciada em 2009.

Com a inclusão de um hotel e um edifício de escritórios, o Bom Sucesso teve em comum com o Mercado Ferreira Borges a ideia de adaptabilidade à mudança dos tempos, na medida em que “o edifício original está intocado e se daqui a 20, 30, 40 anos, se mudar de ideias, é possível retirá-los, porque são edifícios autónomos que nem sequer estão pousados lá dentro, nem tocam no edifício classificado”, garantiu Nelson Almeida, da equipa de arquitetos a cargo do restauro do mercado contíguo à rotunda da Boavista.

“O mundo é dinâmico. O mundo não acaba. Senão ainda estávamos todos na Idade da Pedra, para não descaracterizar e não estragar. Se queremos, de facto, preservar o nosso património, temos de encontrar valências que ajudem a preservá-lo”, corroborou Arnaldo Figueiredo, considerando que “o Bom Sucesso era um caso típico de uma estrutura que ia morrer, ou que já estava completamente morta, sem qualquer valor económico”.

Concluída em de dezembro de 2010, a reabilitação do Mercado Ferreira Borges, seguiu a mesma linha de potencial precariedade dos equipamentos que alberga, no que resultou, ao fim e ao cabo, na instalação de dois cubos negros com a altura do edifício, separados por um corredor e que dão casa às duas salas de espetáculos do Hard Club e a um restaurante.

“Há uma grande diferença entre ter um edifício fechado à cidade e um que foi devolvido à cidade na sua plenitude e esplendor, enquanto edifício marcante da idade do ferro”, disse à Lusa Ana Póvoas, gerente do Mercado Ferreira Borges e Hard Club, elogiando o “processo de aculturação que tem vindo a ser desenvolvido nos últimos 10 anos” na cidade do Porto.

A instalação de um restaurante no piso superior levou a que se compensasse a quebra de receitas em relação às que obtinha o Hard Club nos anos 1990, quando ocupava uma antiga cave de vinho do Porto na marginal de Vila Nova Gaia e era então a mais frequentada sala de espetáculos do Grande Porto.

“Na altura em que estávamos em Gaia, a oferta era muito menor e, por outro lado, havia muito mais digressões internacionais que hoje em dia”, explicou a Ana Póvoas, frisando ainda que a classificação do Ferreira Borges enquanto Património Mundial da Humanidade trouxe uma nova sazonalidade às suas receitas, “com uma frequência enormíssima do público turista, que nos meses de verão e na época alta é o público número um.”

A cargo da supervisão das 44 bancas que equilibram o sushi com a comida tradicional portuguesa ou sul-americana, assim como um mercado de frescos, a gerência do Bom Sucesso revela que o critério de seleção de comerciantes passa por avaliar os que se “enquadram no conceito e naquilo que se pretende para o ‘mix’ comercial do mercado”, que em 2013 ultrapassava o montante de investimento previsto, tendo atingido cerca de 12 milhões de euros.

“Nós, aqui no mercado, ainda temos fila de espera para entradas ao nível da restauração e das bancas. Desde a abertura do mercado que a procura comercial tem aumentado cada vez mais”, disse à Lusa Ana Gomes, gerente do Bom Sucesso.

Já para o diretor do Hotel da Música, “um dos poucos hotéis temáticos do país”, a reabilitação do mercado “foi uma coisa muito boa, porque o edifício data de 1939 (…) e a Câmara do Porto fez muito bem em dar-lhe uma nova vida.”

Aberto ao público em junho de 2013, o hotel desfruta de uma parceria com a Casa da Música, acolhendo artistas e respetivos membros de produção de espetáculos em digressões nacionais e internacionais, algo que para Júlio Guerra, diretor-geral da unidade hoteleira, explica a proveniência “sobretudo portuguesa” da sua clientela, seguida de “um forte mercado da Holanda, Inglaterra, Estados Unidos, Israel e Espanha, mais ou menos por essa ordem.”

Para o vice-presidente do conselho de administração da Mota-Engil, este modo de reabilitação do património pode, ainda que “o contexto e a realidade sejam outras” refletir-se na recuperação do Mercado do Bolhão, ainda que o objetivo, nesse caso, seja seguir a linha tradicional, porque “o Bolhão é bonito como é”.

Mas “não há fórmulas eternas”, ressalva o arquiteto Nelson Almeida, advertindo que, caso contrário, gera-se tão-só “monumentos embalsamados”.

Mercados puxam pela restauração… E visitantes aumentam 30 a 40%

Cerca de cinco a 10% do total de mercados municipais existentes em Portugal apostaram em criar espaços de restauração, resultando num aumento de visitantes entre 30 a 40%, disse à Lusa o especialista em comércio urbano João Barreta.

Segundo o especialista, existem 510 mercados municipais, um dado que apurou no estudo “Mercados Municipais – o(s) que temos, o(s) que queremos, no que cremos!”, de 2015, desenvolvido através de um inquérito enviado a todas as Câmaras Municipais (308).

Para João Barreta, “houve um esforço grande, que se vai intensificar nos próximos tempos de adaptação da oferta à procura” nos mercados municipais, revitalizando os espaços com a criação de zonas dedicadas à restauração ou a integração de eventos culturais, de forma a colmatar a “grande queda a nível de clientes”.

Como complemento à atividade inicial que já desempenhavam, cerca de cinco a 10% do total dos mercados portugueses introduziram novas valências associadas à restauração, referiu o mestre em comércio urbano, destacando como experiências bem-sucedidas os mercados da Ribeira e de Campo de Ourique, em Lisboa.

“Nesses mercados que têm apostado nesta vertente da restauração, realmente o número de visitantes aumentou, aumentou bastante, […] um acréscimo de visitantes na ordem dos 30 a 40%”, disse João Barreta, considerando que esse grande fluxo de pessoas não se reflete no comércio tradicional, porque essa procura “não vai à banca do peixe, não vai à banca da fruta”.

A dinamização dos mercados através de eventos culturais têm tido menos sucesso do que a aposta em espaços de restauração, “andará na volta dos três a quatro por cento”, afirmou o especialista, frisando que tem tendência para aumentar, especialmente em determinadas alturas do ano como é o caso do verão, uma vez que são eventos pontuais.

“O expoente máximo dessa aposta mais numa vertente de cultura será o mercado do Bom Sucesso, no Porto”, disse João Barreta.

No seu entender, este novo conceito para revitalizar os espaços de comércio tradicional “não é replicável para a esmagadora maioria dos mercados municipais”: resulta nos grandes centros urbanos, mas “no meio rural é impensável apostar nestas experiências, porque depois não há procura”.

Questionado sobre o que ainda se pode fazer por estes espaços municipais, João Barreta defendeu que “todas as ideias novas são bem-vindas aos mercados”, referindo que “a restauração foi o primeiro exemplo, a cultura já começa a dar os primeiros passos, mas haverá ainda espaço para novas ideias, a questão às vezes está na própria iniciativa ou não das autarquias”.

Feiras de artesanato, feiras do livro, desfiles de moda, espetáculos musicais ou sessões de cinema são algumas das ideias possíveis de implementar nos mercados, considerou o mestre em comércio urbano.

Cerca de um terço dos 510 mercados municipais foram construídos antes de 1950 para abastecimento local de produtos frescos às populações. Trinta por cento destes espaços estão classificados como património nacional ou municipal, segundo dados apurados no estudo.

Em relação a um eventual desaparecimento dos mercados municipais, João Barreta considerou que o número de espaços não tem diminuído de forma muito significativa, tratando-se algumas vezes de “deslocalizações” do centro das localidades para zonas mais periféricas.

Os mercados municipais existentes em Portugal representam cerca de 58 mil pontos de venda, entre lojas e bancas, proporcionando 150 mil postos de trabalho, mas o especialista admite que o número seja bem superior devido ao emprego informal que é criado.

Há cerca de 160 mil pessoas a visitar diariamente estes espaços, sendo o principal desafio transformar visitantes em clientes efetivos.

O distrito de Lisboa destaca-se por ter o maior número de mercados a nível nacional (18%, mais concretamente 94 espaços), seguindo-se o distrito de Setúbal, com 9%, o que corresponde a 49 mercados, e, em terceiro lugar, o distrito de Faro, com 38 espaços de comércio tradicional. Os distritos com menos mercados são Viana do Castelo (10), Bragança (11) e Guarda (11).