Imagine uma sala de aula não muito grande, com espaço que chegue apenas para 32 alunos, cada um distribuído na sua cadeira. Agora esqueça as turmas divididas por anos e a forma que, desde sempre, quem ensina utiliza para dividir quem aprende. Aqui é jovens, velhos, adultos, meia idade, tudo ao molho e fé na educação. É a sala dos campeões, sejam eles novos ou graúdos, e não há professores. Só há uma disciplina, o futebol. Toda a gente está ali para aprender, mas uns quase só falam e outros apenas ouvem. Porque esta turma é aberta e se há alunos que já ali estão há décadas, sem irem uma vez para a rua, outros só agora lá chegaram. E são esses os que mais ouvem, e admitem-no: “Estamos aqui para aprender. Não esperamos um bom resultado.”

Kaisar Bekenov é humilde, fala sem ambições e, como diretor-geral do Astana, espelha o que são os cazaques no interior da tal sala de aula — estreantes, a apalpar o desconhecido de estarem na turma de uma Liga dos Campeões. Estão ali para ouvir, muito, porque são um aluno que só joga à bola desde que, em 2009, se tornou num clube de futebol. Em seis anos chegou à sala onde todos querem estar e quase parece um sobredotado. Chegado ali, mandam-lhe fazer exames contra quatro equipas e o problema é que todas, na teoria, sabem muito mais que ele e já quase nem precisam de rever a matéria. São as alturas em que os cazaques ouvem muito e falam pouco. O contrário do que faz o aluno Benfica, que conhece esta turma há muito tempo.

As lições, por isso, começam cedo. A sala está cheia de mandões, de alunos que estão ali há que tempos e sabem o que é acabar o ano com a melhor nota. Os encarnados, com o Astana à frente, mostram como encostar um adversário à área. Sobem os defesas quase até ao meio campo, fazem os laterais atacarem como extremos e pedem a um dos avançados que saia da área para trocar a bola com os outros. E tem de ser assim, porque o Astana, tímido e encolhido, tem os 11 pupilos atrás da bola, a ver o que os do Benfica fazem com ela, e pelo meio do relvado é difícil de passar. O jogo passa a depender muito do que Gaitán faz com Eliseu e do que Nélson Semedo inventa com Gonçalo Guedes. Mas fica difícil que algo aconteça. Mesmo que o extremo argentino se mexa muito e peça aos seus para fazerem tabelas e o português seja o primeiro a sprintar quando o Benfica tenta atacar rápido.

Porque os cazaques são um aluno atento e juntam-se, apertam os metros que existem entre eles e não deixam espaço para que alguém de encarnado apareça entre as linhas que montam à frente da baliza. Nem Jonas, o brasileiro com pantufas nos pés que mais gosta de lá aparecer, arranja espaço para o fazer. O Benfica tinha muita bola, trocava-a com fartura, mas a cautela era tanta quanta a lentidão a construir passes e jogadas que não dava para enganar os cazaques. Só aos 30’, na área, é que mostra o veludo que tem nas botas quando domina um cruzamento vindo do ar, usa a direita para dar um cabrito a Postnikov e depois a canhota para rematar contra o guarda-redes Erić. Foi aí, mais ou menos, que o Astana chegou aquela altura da aula em que a concentração quebra e começou a fazer faltas atrás de faltas. As pernas já pesavam com tanta corrida atrás da bola. Mas nem assim o Benfica resolvia o problema que lhe desse a solução para chegar perto da baliza contrária.

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E o Astana, como não ia ouvindo nada de novo, começou a fazer perguntas. Dzolchyiev era o mais curioso e, na direita, fartava-se de correr, de ir pela esquerda e pela direita de Eliseu e, quando podia, de rematar. Nunca acertou na baliza de Júlio César, mas ameaçou. Como o fez Jonas, mesmo à beira do intervalo, quando viu Mitroglou e Gonçalo Guedes a esticarem-se nas alas e a abrirem-lhe uma auto-estrada num contra-ataque. O brasileiro, cheio de espaço à frente, entrou na área, mas a canhota foi frouxa e apenas soltou um remate rasteiro, contra o pé de Erić. O avançado andava mais na área do que fora, longe de Gaitán, que às tantas foi buscar o livro da técnica à estante e abriu-o no capítulo das roletas, toques de calcanhar e simulações de corpo para irritar os cazaques — que não tinham alguém que fizesse o mesmo.

Benfica's Argentinian midfielder Nico Gaitan (R) vies with Astana's midfielder Georgi Zhukov (C) during the UEFA Champions League football match SL Benfica vs FC Astana at the Luz stadium in Lisbon on September 15, 2015. AFP PHOTO/ FRANCISCO LEONG (Photo credit should read FRANCISCO LEONG/AFP/Getty Images)

Nico Gaitán marcou o primeiro golo e deu ordem para começar a jogada que acabou no segundo. Foto: FRANCISCO LEONG/AFP/Getty Images

O Benfica falava, o Astana ouvia e, na segunda parte, Gaitán começou a gritar. Os maiores berros apareceram depois de Schetkin, logo no arranque, se insurgir contra o aluno mais experiente e, na área encarnada, se esticar todo para rematar a bola ao poste esquerdo da baliza, após um cruzamento da direita ao qual ninguém do Benfica reagiu. A partir daqui o argentino não se calou. Folheava as páginas do tal livro e lia-as, a alto e bom som, enquanto corria, irrequieto, menos pela esquerda e mais pelo meio. Aos 51’ arranca assim, de fora para dentro, pede para Mitroglou lhe servir de tabela, o grego obedece e o argentino entra a sprintar área dentro, onde remata rasteiro com a canhota. Gaitán fazia-se professor para dar a lição do 1-0 e mostrar aos cazaques, todos estreantes em jogos da Champions, o que é ter já 30 partidas na competição.

E não se ficou por aqui. Continua frenético, a correr muito com a bola no pé e a chamar Jonas, a dizer-lhe para se juntar a ele para obrigar os adversários a mexerem-se e atrair-lhes a atenção. Foi assim aos 62’, quando ambos trocaram um passe a dois metros de distância para o brasileiro, de primeira, mandar a bola encontrar-se com a corrida de Eliseu, na esquerda — onde o canhoto cruzou rasteiro para Mitroglou encostar e mostrar como é simples explicar o 2-0. Pouco antes, o grego não acertava com a bola na baliza, ao cabecear um cruzamento que lhe chegara direitinho do pé de Nélson Semedo. O Astana, aqui, revoltou-se. Fartou-se de ouvir lição atrás de lição e levantou-se da cadeira. Os médios começaram a pressionar à frente e a juntarem-se aos extremos, cheios de dúvidas na ponta das chuteiras, a tentarem ser dois a perguntar para um lateral do Benfica a responder. Ficaram mais agressivos, tentaram apertar os encarnados e, aos 65’, criaram uma jogada para Shomko, de longe, disparar um remate que passou bem perto da baliza.

Depois, nada feito. Os cazaques voltaram a sentar-se nas carteiras não por quererem, mas por não terem hipótese. Os encarnados não abrandavam e, à boleia de Gaitán, continuavam a tentar acelerar toda e qualquer jogada que montavam perto da área adversária. Samaris, no meio, chegava para distribuir os passes que Talisca nunca conseguiu dar e, quando Jonas saiu, o matulão Mitroglou provou que o tamanho não lhe tira técnica aos pés — aos 87’, juntou uma roleta à Zidade a uma cueca (bola entre as pernas) para se livrar de dois adversários, passar a bola a Eliseu e ver o lateral cruzar para Raúl Jiménez rematar pouco ao lado da baliza. O toque para o intervalo fizera o Benfica regressar à sala de aula não com mais energia, mas com mais vontade de a gastar. Os encarnados passaram a acelerar os passes e as jogadas ao máximo e fizeram com que o Astana perdesse o fio à meada das explicações. Para quê explicar as coisas devagar quando se pode ensinar a correr?

Quando o árbitro deu o toque de saída para o intervalo grande (o Benfica só volta à Champions na próxima semana, quando jogar em Madrid, contra o Atlético), os encarnados ficaram com uma certeza — num jogo marcaram tantos golos quanto os que, na época passada, fizeram nas seis partidas da fase de grupos da competição. O Astana sai da Luz com a lição de entrar a perder na Liga dos Campeões aprendida e ajudou a provar que, quando decide arriscar a fazer as coisas rápido e com os jogadores a saírem das posições habituais para tabelarem entre si, o Benfica é bem perigoso a atacar. Depende muito de Nico Gaitán para explicar bem as lições (até mais do que em Jonas), mas é o que dá ter alguém na equipa que não para de aprender truques novos. Falta saber como a equipa se comportará quando a enfiarem na mesma sala de aula com o FC Porto, no domingo.