O BPP já faz parte da história do sistema financeiro português. Foi a primeira baixa portuguesa após a falência do Lehman Brothers, em 2008, devido à crise do subprime nos Estados Unidos, e era um banco de investimento com um protagonismo superior à sua quota de mercado.

Era o private banking mais conhecido do país, tinha artistas e políticos a promoverem a sua marca em publicidade apenas publicada na comunicação social de referência e tinha, acima de tudo, uma estrela dos mercados chamada João Rendeiro, que tudo comandava. Um banqueiro que, dias antes de solicitar a intervenção e a ajuda de emergência ao Banco de Portugal, apresentava uma biografia que espelhava a história de um banqueiro que “venceu os mercados” mas que foi obrigado a entregar a gestão ao supervisor da banca para que este injetasse 450 milhões de euros – facto que não impediu a falência da instituição.

A derrocada da instituição liderada por João Rendeiro levou a uma avalanche de investigações do Ministério Público (MP), do Banco de Portugal, supervisor da banca, e da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM), regulador dos mercados de capitais. Como ficaram essas investigações cerca de sete anos depois da intervenção do BdP e das primeiras buscas judiciais na sede do BPP?

Comecemos pelas investigações criminais a cargo do MP, mais concretamente do Departamento de Investigação e Acção Penal de Lisboa, liderado pela procuradora-geral adjunta Maria José Morgado.  O processo mais avançado é precisamente aquele que o Observador tem vindo a noticiar. O chamado processo da Privado Financeira, teve julgamento entre Fevereiro e Novembro deste ano, tendo João Rendeiro, Paulo Guichard e Salvador Fezas Vital, estes dois últimos administradores do BPP, sido absolvidos do crime de burla qualificada. O MP interpôs recurso, solicitando à Relação de Lisboa uma condenação dos arguidos a prisão efetiva com uma pena superior a cinco anos.

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Falsidade informática em vez de falsificação de documento

O julgamento que se segue prende-se com o chamado processo principal do BPP. Nestes autos investiga-se a alegada falsificação da contabilidade do banco, que terá sido levada a cabo pela administração liderada por João Rendeiro para esconder os prejuízos financeiros da instituição.  O ex-presidente executivo foi acusado, em Junho de 2014, pelo DIAP de Lisboa, de seis crimes de falsidade informática e um crime de falsificação de documento. Foram ainda acusados os ex-administradores Paulo Guichard, Salvador Fezas Vital e Fernando Lima e um quadro do BPP chamado Paulo Lopes. Estava pendente um recurso da defesa sobre a competência do Tribunal Central de Instrução Criminal para pronunciar os arguidos para julgamento, mas a Relação de Lisboa decidiu esta quinta-feira, confirmou o Observador junto do tribunal, rejeitar os argumentos da defesa. O julgamento deverá ser marcado em breve.

A curiosidade deste caso reside nos crimes pelos quais os arguidos estão acusados. Em vez do crime clássico de falsificação de documento, o MP optou por acusar João Rendeiro e os restantes ex-responsáveis do crime de falsidade informática. Porquê? Em primeiro lugar, porque a informatização e a digitalizaçao documental em vigor no dia-a-dia das sociedades comerciais faz com que apenas exista uma contabilidade em suporte informático – e não em papel. Por outro lado, o crime de falsidade informática tem uma pena máxima de prisão até cinco anos – claramente superior à pena máxima do crime de falsificação de documento que não vai além dos três anos. Esta diferença entre as penas máximas faz também com que os prazos de prescrição do crime de falsidade sejam maiores.

Prémios e salários levam a investigação

Um terceiro caso do BPP ainda está em investigação criminal. Trata-se de um caso relacionado com o alegado pagamento de salários e prémios de gestão à administração e a altos quadros, que nunca foram declarados ao fisco por terem sido pagos, nalguns casos, através de sociedades sedeadas em paraísos fiscais. Além das suspeitas de fraude fiscal, o DIAP de Lisboa investiga indícios de branqueamento de capitais, visto que os valores monetários terão regressado a território nacional – isto é, as sociedades offshore serviram apenas para tentar ocultar o pagamento de tais valores.

Um dos prémios sob investigação, e que foi atribuído pela administração de João Rendeiro a si própria pelo desempenho no exercício de 2007 (cujas contas foram postas em causa por diversas entidades como o MP, o Banco de Portugal, a CMVM, o Tribunal de Comércio e a Comissão Liquidatária), está devidamente expresso no recurso entregue pelo MP no caso da Privado Financeira, que o Observador tem vindo a revelar durante a tarde.  Trata-se de um valor total de 5,5 milhões de euros que Rendeiro, Paulo Guichard e Fezas Vital atribuiram a si próprios sem consultarem a Comissão de Vencimentos, que tinha autoridade sobre essa matéria. Abordaremos esse ponto numa peça autónoma a publicar mais tarde.

Os investimentos de retorno absoluto

Foi um dos produtos do BPP mais falados, quando a derrocada do banco abria os telejornais em 2007 e 2008, particularmente devido aos clientes lesados que se juntaram em protestos tão polémicos como as actuais manifestações dos lesados do papel comercial do BES: os investimentos ou depósitos de retorno absoluto.

Tratava-se de clientes que tinham investido capital em produtos que julgavam ser depósitos a prazo com garantia de capital mas que, na verdade, estavam a investir em produtos estruturados de alto risco.

As queixas por burla qualificada de centenas de clientes foram concentradas num inquérito que está no DIAP de Lisboa. Um número significativo de ex-clientes do BPP desistiram ou não chegaram a apresentar queixa, devido ao facto de terem conseguido recuperar ou a totalidade ou uma parte significativa do capital investido. Devido a esse facto, trata-se de um processo que não é prioritário para o MP.

Os reguladores

O Banco de Portugal (BdP) e a CMVM fizeram também as suas próprias investigações.

No caso do supervisor da banca, que escrutinou o cumprimento da lei que regula as sociedades financeiras, foram considerados culpados 11 arguidos, entre administradores e funcionários do BPP, por infracções relacionadas com a falsificação da contabilidade, a violação de regras contabilísticas e a prestação de informação falsa ao BdP. No caso de João Rendeiro, foi aplicada uma coima de cerca de dois milhões de euros e dez anos de inibição do exercício de funções na banca em Portugal, devido a nove infrações especialmente graves que foram consideradas como provadas pelo supervisor. Paulo Guichard foi condenado ao pagamento de 1,5 milhões de euros, e inibição por um período de dez anos e Fezas Vital a uma multa de 850 mil euros, acrescida de inibição por oito anos.

O Tribunal de Supervisão de Santarém confirmou as condenações do BdP, tendo reduzido o montante global das multas para cerca de dez milhões de euros, sendo certo que João Rendeiro terá de pagar 1,5 milhões de multa.

Já a CMVM condenou os mesmos responsáveis, mais o ex-administrador Fernando Lima e os funcionários Paulo Lopes e Vítor Castanheira, ao pagamento de multas que ultrapassaram, no total, cerca de 4,4 milhões de euros. A maior parte dos arguidos, entre os quais João Rendeiro, impugnaram a condenação do regulador do mercado de capitais no Tribunal de Supervisão de Santarém. O julgamento encontra-se na fase final.

Insolvência dolosa

Também o Tribunal do Comércio de Lisboa apreciou o caso de insolvência do BPP por participação da Comissão Liquidatária. Num julgamento que durou um ano, entre Maio de 2013 e Maio de 2014, João Rendeiro, Paulo Guichard e Fezas Vital foram considerados culpados de insolvência dolosa, tendo sido inibidos de exercer actividade comercial durante oito anos. Fernando Lima, Paulo Lopes e Vítor Castanheira tiveram uma pena mais reduzida: inibição de três anos.

Todos estes ex-responsáveis do BPP ficaram impedidos de exigir qualquer crédito sobre a massa falida.

No recurso entregue pelo MP na Relação de Lisboa no caso da Privado Financeira (a que o Observador teve acesso) estão expressos os fundamentos do Tribunal do Comércio de Lisboa para considerar os ex-responsáveis do BPP culpados de práticas de gestão gravosa para os interesses da instituição e dos clientes:

•       Não revelação na contabilidade das garantias prestadas aos clientes de retorno absoluto (fls. 82 da sentença); ocultação que deturpou de forma grave a situação patrimonial e financeira do BPP (fls. 85), impedindo a sua correcta compreensão por parte das autoridades de regulação e supervisão; situação que se prolongou desde, pelo menos 2002/3 até ao final de 2008, apenas cessando com a chegada da administração provisória em Dezembro deste ano.

•       Afectação da perda resultante da insolvência do Lehman Brothers na conta de uma estratégia de retorno absoluto, irregularidade que impediu que os bancos que concederam crédito ao BPP – bem como o Estado, que lhe prestou uma garantia – tivessem a exacta noção da situação patrimonial e financeira do Banco.

•       Utilização de sociedades offshore em proveito do próprio BPP, evitando assim o cumprimento de limites prudenciais ou a constituição de provisões, tudo gerando elevadas perdas que foram concentradas numa de tais sociedades mas que eram, afinal, do próprio Banco, o que a administração provisória não teve alternativa senão assumir como tal.

•       Utilização de um conjunto de sociedades offshore para efectuar pagamentos de prémios e remunerações a administradores, imputável aos três arguidos destes autos, os quais deram instruções para que parte destas quantias fossem transferidas para contas das quais não eram titulares (fls. 101). Acrescenta a sentença: “Pretender que os administradores que auferiam estas quantias não sabiam como eram processadas é ridículo até porque, tendo em conta a diferença apurada, é manifesto que da simples leitura da declaração emitida pelo BPP para efeitos fiscais se denotava que não estava incluída toda a remuneração auferida”.