Na aldeia de Monsanto, distrito de Castelo Branco, vive-se um sentimento de revolta. Os pais das crianças que, no ano letivo passado, estiveram a estudar em modelo de ensino individual, na antiga escola primária daquela aldeia, não compreendem por que razão os filhos ficaram retidos e criticam a forma como todo o processo se desenrolou, embora o Ministério da Educação reitere que os pais foram sendo avisados da situação de abandono escolar desde o início do ano letivo. Para nove desses 11 alunos, entretanto a estudar na escola primária de Idanha-a-Nova, há ainda esperança de recuperar o ano perdido.

À exceção dos dois alunos do 4.º ano, que chegaram a fazer exames de final de ciclo e não obtiveram aprovação, os outros nove – que se repartem pelo 1.º, 2.º e 3.º anos de escolaridade – podem fazer uma espécie de dois em um. Isto mesmo se conclui da leitura do despacho normativo n.º 17-A/2015: “Um aluno retido num dos anos não terminais de ciclo que demonstre ter adquirido os conhecimentos e desenvolvido as capacidades definidas para o final do respetivo ciclo poderá concluí-lo nos anos previstos para a sua duração, através de uma progressão mais rápida, nos anos letivos subsequentes à retenção“.

E os pais já estão a par dessa hipótese. “Estou a pensar falar com a professora dele para lhe fazer uma prova de diagnóstico. Estou só à espera do dia do atendimento aos pais”, afirmou ao Observador uma das mães, que não quis ser identificada, revelando-se ainda “muito confusa e revoltada” com toda a situação. E não é a única. O seu filho ainda não parou de fazer perguntas.

O menino está numa grande revolta, porque não quer estar no mesmo ano. Ele está completamente apto para estar um ano à frente. Chega a casa e diz-me: ‘Eu já sei isto. Já fiz estes trabalhos todos no ano passado’. Todos os dias lhe tento explicar porque chumbou, mas nem eu própria sei. Como lhe vou explicar?!”, conta ao Observador esta mãe.

“Eles foram chumbados por uma guerra que não tem nada a ver connosco”

Sem encontrar explicações para a decisão do Ministério da Educação, que afirma que só ficou a conhecer no último dia 18 de setembro, quando foi com o filho à escola primária de Idanha-a-Nova para a apresentação, Ana (como será chamada a partir de agora) afirma que “há demasiadas pontas soltas” em todo o processo.

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“Houve aqui muitas guerras. Não há outro nome. É ridículo. Isto é uma guerra aberta. E eu pergunto: o que é que os miúdos têm a ver com a porcaria da política? Eles foram chumbados por uma guerra que não tem nada a ver connosco”, atira Ana sem acusar o alvo, acrescentando que “se não tivesse havido esta guerra toda, teríamos sido avisados sobre tudo isto ao longo do ano letivo passado. Acha normal só termos sido informados de que eles tinham chumbado no dia 18? Já com livros comprados e tudo…”, remata.

Mais, Ana garante que nunca recebeu nenhuma carta a dizer que o filho tinha chumbado o ano, nem tal lhe foi comunicado na altura em que fez a matrícula para 2015/16. Ana já tinha decidido que, este ano, o filho iria frequentar a escola de Idanha, a 35 km de Monsanto, por estar farta de “tantas cartas e reuniões com as professores e confusões”.

Também Filipe Jeremias, responsável pelo colégio privado “Os ERES”, que ajudou a implementar esta modalidade de ensino em Monsanto no ano letivo passado, não tem dúvidas que “se trata de política” porque, afirma, tudo estava a correr dentro da legalidade naquela aldeia.

Ministério da Educação vs pais e autarquia

Mas afinal o que argumentam uns e outros, que é como quem diz Ministério da Educação e pais e autarquia?

Agora, tal como há um ano em declarações ao Observador, o Ministério da Educação afirma que o pedido de transferência para a modalidade de ensino individual foi entregue no Agrupamento de Escolas de Idanha-a-Nova no dia 10 de outubro de 2014, depois do prazo estabelecido para a matrícula (entre 15 de abril e 15 de junho do ano letivo anterior), e quando os alunos já tinham atingido o limite de faltas. Aqui haveria, desde logo, uma desconformidade. Acontece que, segundo a autarquia de Idanha-a-Nova, “os encarregados de educação fizeram o pedido de transferência, no período legal, por via postal, tendo recebido a respetiva anuência pela mesma via”. E também Maria de Fátima Duarte, membro da equipa técnica da Comissão Nacional de Proteção das Crianças e Jovens em Risco, garantiu ao Observador que “a transferência de toda e qualquer criança deve ocorrer até ao início do segundo período”, seja entre escolas, seja entre modalidades de ensino.

Mas o Ministério de Nuno Crato foca sobretudo a argumentação num ponto, que também já sublinhava há um ano. Afirma o Ministério que o Agrupamento de Escolas, “após confirmar o seu entendimento da situação com a Direção de Serviços da Região Centro (DSRC)”, considerou “improcedentes os argumentos apresentados pelos encarregados de educação para justificar uma alegada formalização da integração destes alunos naquela modalidade”.

A decisão foi comunicada aos pais durante o mês de outubro” e “seguiram-se outros contactos da escola com os encarregados de educação, a reforçar que os alunos deveriam ir às aulas”, acrescenta a tutela.

E em que se baseou o agrupamento e a DSRC para invalidar o pedido? Na lei. É que os pais daquelas 11 crianças, depois de perceberem que a Escola EB Relva – com ordem de fecho – não iria reabrir portas em Monsanto, apresentaram, em conjunto, a 10 de outubro de 2014, uma “declaração de manifestação de vontade de integrar os filhos na modalidade de ensino individual, indicando para a totalidade dos 11 alunos três docentes”. Pretendendo com isso que as crianças não tivessem de sair de Monsanto. Acontece, explica o ministério, que a lei diz que ensino individual é aquele “que é ministrado por um professor habilitado a um único aluno, fora de um estabelecimento de ensino”, como se pode ler no artigo 3.º do Decreto-lei n.º 152/2013, de 4 de novembro.

Pais e autarquia contestam. “Às crianças foi ministrado o ensino individual, na modalidade de um professor para um único aluno, comprovado no dossier de cada criança, que refletiu a evolução individualizada de cada aluno, ao longo do ano, de forma diferenciada. Nas diferentes comunicações e visitas do Ministério da Educação sempre foi demonstrado e comunicado o cumprimento da Lei”, atesta a autarquia de Idanha-a-Nova, em respostas por escrito ao Observador.

“Apesar de haver três professoras para os 11 alunos, estavam a aprender cada um com a sua. Não tem nada a ver com o ensino normal”, completou Ana. “A lei é provavelmente tão clara e tão subjetiva quanto pode ser. O que é que invalida existir três professores com 11 alunos num espaço de aprendizagem, sendo que cada um tem um roteiro de pesquisa individualizado, um plano individualizado e metas curriculares individualizadas e trabalham autonomamente?”, questiona, de forma retórica, Filipe Jeremias.

Mas o consultor da sociedade de advogados Miranda, Diogo Bártolo, não tem dúvidas quanto à clareza da lei: “Parece evidente que a lei exige que as aulas sejam dadas a um único aluno num determinado espaço e a uma determinada hora, o que não se coaduna com uma aula coletiva ou com uma aula em que estão presentes vários alunos no mesmo espaço e no mesmo horário todos eles orientados pelo mesmo professor, apenas tendo cada aluno uma parte da atenção do professor”.

Parece evidente que a lei exige que as aulas sejam dadas a um único aluno num determinado espaço e a uma determinada hora”, afirma Diogo Bártolo, advogado da Miranda.

Ao Observador, o advogado acrescenta ainda que “mesmo que o professor alegue que trabalha com cada aluno individualmente, o facto é que o professor se dispersa, saltitando de um aluno para o outro, eventualmente falando de matérias distintas, o que acaba por ter os inconvenientes das aulas ‘clássicas’, sem ter as suas vantagens”.

Pais garantem que agrupamento de escolas deu autorização

E se, por um lado, o Ministério afirma que o agrupamento de escolas não deu autorização para a transferência para esta modalidade de ensino, a autarquia de Idanha-a-Nova e os pais garantem que o consentimento existiu.

“Temos um documento em mão conforme o agrupamento aprovou, sim senhora”, afiança Ana, que se recusa a mostrar ou enviar uma cópia do mesmo ao Observador. “Uma coisa é a gente ter o documento na nossa posse e se tivermos de agir mostrarmos a uma certa pessoa. Outra coisa é mostrar o papel num jornal”, justifica-se.

O Observador tentou contactar o diretor do Agrupamento de Escolas de Idanha-a-Nova por várias vias e não obteve, até ao momento, quaisquer respostas.

Quanto aos avisos que o Ministério da Educação afirma que desde o início do ano letivo foram sendo enviados pelo agrupamento para os pais, no sentido de dar conta da ilegalidade do processo e apelando a que as crianças fossem às aulas na escola de Idanha, Ana garante que nunca lhe foi dito que estavam em situação ilegal.

“Onde é que eu tenho um documento, uma carta, em que se comprova que isto era ilegal? A única coisa que o agrupamento foi fazendo foi enviar cartas em como os alunos estavam a ter faltas injustificadas. Nunca falava em abandono escolar, nem que eles estavam chumbados. Nós temos dois dedos de testa. Se esse aviso tivesse sido feito nós próprios teríamos tomado uma atitude”, defendeu-se Ana.

E porque é que perante essas cartas, que mostravam, só por si, que algo não estava bem, nunca se dirigiram ao agrupamento para perceber o que se estava a passar? “Não tinha lógica irmos à escola porque eles estavam a ter ensino individual e o agrupamento sabia. E a lógica era enviar tudo por carta para tudo ficar escrito. Também nos foi aconselhado pela autarquia, mas fomos nós que tomámos essa decisão”, justificou-se.

CPCJ foi unânime: o direito à educação estava salvaguardado

Pais e autarquia apoiam-se ainda na decisão da Comissão de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ) para sustentarem as suas posições. É que, de acordo com o novo Estatuto do Aluno e Ética Escolar, as faltas injustificadas não podem ultrapassar os 10 dias seguidos ou interpolados no 1.º ciclo de ensino e, quando atingidas, os pais são chamados à escola. Caso os pais não compareçam, então a CPCJ é informada e são procuradas em conjunto soluções para ultrapassar a falta de assiduidade. E foi isso que o Ministério da Educação fez: comunicou à CPCJ e à Escola Segura.

O Observador contactou a CPCJ de Idanha-a-Nova que apenas esclareceu que, “em sede de reunião da modalidade restrita da Comissão de Proteção de Crianças e Jovens de Idanha-a-Nova, aquando da sinalização das crianças com frequência escolar na localidade de Monsanto, esta comissão deliberou por unanimidade o arquivamento liminar dos processos por considerar estar salvaguardado o direito à educação destas crianças, não se verificando qualquer situação de perigo que legitime a intervenção desta CPCJ”.

“Porque teríamos de ir tirar dúvidas ao agrupamento, se a própria CPCJ arquivou o processo e disse que as crianças não estavam em abandono?”, frisou Ana. E a autarquia acrescenta que “se o Ministério entendesse durante o ano letivo 2014/2015 não concordar com tal deliberação da CPCJ, então teve o ano letivo inteiro para denunciar tal situação ao Ministério Público”.

Mas como é que a CPCJ arquiva um processo se há crianças sinalizadas pela escola como estando em abandono escolar? “Há aqui qualquer coisa que não bate certo”, afirma Maria de Fátima Duarte, da Comissão Nacional de Proteção de Crianças e Jovens em Risco, começando logo por esclarecer que não está por dentro deste caso em concreto.

Falando em termos genéricos, Maria de Fátima Duarte explica que “cada comissão, desde há dois anos e meio, tem a figura do professor representante a tempo inteiro, designado pelo agrupamento de escolas da sua área ou do território de intervenção”.

Portanto a CPCJ de Idanha-a-Nova também tem o seu professor ou professora que deve ter feito o contacto com o agrupamento, que lhe deve ter dito que os miúdos estavam em ensino individual. Porque se tivessse dito que não era reconhecido esse ensino, a comissão nunca poderia arquivar os processos”, esclarece Maria de Fátima Duarte, da CNPCJR.

Por outras palavras, a CPCJ “só terá arquivado porque considerou que não havia situação de perigo, com base na informação que o seu professor representante recolheu junto do agrupamento”. Ou seja, junto da escola de Idanha-a-Nova, onde foi feito o tal pedido de transferência e respetiva anuência, que os pais garantem ter na sua posse.

O Observador procurou mais explicações junto da CPCJ de Idanha-a-Nova e do Ministério da Educação, sem sucesso.

Dois alunos do 4.º ano fizeram os exames nacionais

Há um último argumento que está a ser utilizado pelos pais e autarquia contra o Ministério da Educação. O facto de os dois alunos (dos 11) que frequentavam o 4.º ano terem feito exames nacionais.

“Dois alunos foram propostos a exame do 4.º ano, conforme determina a lei para os alunos matriculados na modalidade de ensino individual. Fizeram o exame que lhes foi determinado fazer e não transitaram. Tal comprova que o Ministério aceitou a sua transferência e frequência no ensino individual“, argumenta a autarquia de Idanha-a-Nova.

O Ministério da Educação justifica que “quanto aos alunos do 4.º ano, apesar de não terem frequentado o Estabelecimento de Ensino, estando por isso de facto em situação de abandono escolar, foi-lhes autorizado a título excecional pelo Júri Nacional de Exames realizarem as provas finais de ciclo como autopropostos”.

“Então? Estes dois alunos estavam legais e os outros nove ilegais? Abrem exceção para dois e os outros nove são o quê?”, reivindica Ana.

Estes dois alunos obtiveram nota negativa a Português e a Matemática tanto na 1.ª como na 2.ª fase, “o que implicaria em qualquer situação a sua retenção no mesmo ano de escolaridade”, acrescentou o Ministério da Educação, sem adiantar mais explicações.

Autarquia promete agir

Posto tudo isto, e dado que a posição da autarquia e dos pais é diferente da do Ministério da Educação, o presidente da Câmara Municipal de Idanha-a-Nova avança, por escrito, ao Observador, que “está a reunir toda a informação para denunciar e agir em conformidade, junto das entidades competentes, pelos direitos dos cidadãos deste concelho, que não podem ser discriminados face a outros concelhos e regiões do País”.

Também as mães e os pais daquelas crianças estão a planear reunir-se para “ver o que fazer e com quem falar”. “Ainda estamos todos muito confusos e sentimo-nos de pés e mãos atados. Tenho de saber onde me posso dirigir, mas quieta não vou ficar”, garante Ana.