O recado é curto, escrito em francês e com uma caligrafia arrebitada. Ainda não era tempo de folhas pautadas e, talvez por isso, as frases caiam um pouco à medida que chegam ao lado direito da folha — sinal de que foi escrito por alguém destro. Lá em cima, lê-se em duas linhas: “Paço de Belem — Lisboa”.

Minha querida Izabel,

Vamos ao ginásio e eu visto o meu querido vestido de veludo azul com botões de diamantes…”

E, no fundo, uma rubrica rápida: “Amélia”. Ou seja, a Rainha Dona Amélia, a última de Portugal.

Carta Manuscrita - Rainha D. Amélia

Carta manuscrita de Rainha Dona Amélia

Este recado encontra-se nas mãos de Adelino Correia-Pires, um alfarrabista de Torres Novas, no distrito de Santarém. E desde as 10h41 de 13 de outubro que está à venda no site de compras e vendas online OLX por 150 euros. Foi reservada e na manhã desta segunda-feira acabou por ser vendida e o anúncio desapareceu.

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“Sou alfarrabista e, como tal, vou comprando ao longo do tempo livros e documentos manuscritos em leilões particulares. Ao longo deste tempo fui adquirindo vários documentos manuscritos, tenho muitos, e entre eles alguns da Rainha Dona Amélia”, conta ao Observador.

O alfarrabista garante a autenticidade do escrito referindo-se à gravura que diz “Paço de Belem — Lisboa”: “A própria carta está em papel timbrado e o timbre está em relevo”.

Quando lhe perguntamos como é que conseguiu chegar a este recado com a assinatura da última rainha de Portugal — mulher de Dom Carlos I e mãe de D. Luís Filipe, mortos no regicídio de 1908 –, Adelino Correia-Pires evita responder: “Não me pergunte onde é que eu comprei essa carta… Tal como os jornalistas, os alfarrabistas também têm as suas fontes. E é claro que não as podem revelar…”.

Mesmo assim, deixa algumas pistas. “A família real exilou-se de forma inopinada e imprevista, logo depois da implantação da República. Assim, houve muitas coisas antigas que ficaram para trás, muitas vezes em mãos de famílias nobres. E nós, alfarrabistas, movemo-nos bem nestes meios. As nossas fontes de aquisição são particulares, leilões, outros colegas… Mas agora não me pergunte onde é que eu comprei essa carta.”

A carta terá sido comprada num lote de documentos manuscritos da Rainha Dona Amélia, alguns deles dirigidos à mesma Izabel que é destinatária do recado que esteve à venda no OLX. Embora não esteja identificada, Adelino Correia-Pires julga que se trata de Isabel Lobo de Almeida, uma mulher proveniente da Casa Galveias e que era camareira da rainha. E mesmo que também não se saiba ao certo qual é a data deste recado, o alfarrabista julga que deve ser do início da década de 1890. Isto porque, do lote de correspondência escrita pela pena da Rainha Dona Amélia, que adquiriu, algumas cartas surgem datadas dessa altura. Uma é, por exemplo, de 28 de maio de 1892.

Afonso Costa e a sua filha “forte e gordinha”

Ora, se às 10h41 de 13 de outubro Adelino Correia-Pires colocava à venda um recado da última rainha de Portugal, às 10h43 colocou o anúncio de uma outra carta assinada por aquele foi uma das maiores personalidades do derrube da monarquia: o republicano Afonso Costa.

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Carta de Afonso Costa à mãe.

Datada de 22 de outubro de 1894, a carta foi escrita quando Afonso Costa ainda era estudante de Direito na Universidade de Coimbra. Talvez pela distância que ainda tinha dos anos em que viria a ser uma personagem central da implantação da República, não se dirigia a companheiros conspiradores ou outros subversivos, mas antes à sua mãe.

“Peço-lhe o favor de não se affligir com o que se passa com o arrendamento dos Chões. Atraz de tempos, tempos vêm…”

Esta não é a única carta que Adelino Correia-Pires tem escrita pelo punho de Afonso Costa — que naqueles anos assinava Affonso Costa. Noutra correspondência, que o alfarrabista destaca sem hesitações, o republicano dá a notícia do nascimento da sua filha à mãe:

18 de Novembro de 1896

Minha querida mãe,

A estas horas deve já ter recebido a feliz notícia do bom sucesso da Alzira [a mulher de Afonso Costa] (…). As dores só lhe duraram quatro horas e meia (…). A criancinha está muito bem, é forte, gordinha, bem construída e aqui para nós tão bonita pelo menos como o Sebastião [primeiro filho do casal]. Não envergonha as minhas barbas, creia.”

Afonso Costa estava certo quando disse à mãe que “atrás de tempos, tempos vêm”. Porque anos depois, mais do que um estudante universitário que amiúde se correspondia com a sua mãe, Afonso Costa tornou-se numa figura de proa da contestação contra a monarquia.

Em 1906 — dois anos antes do regicídio de 1908, do qual Afonso Costa terá sido um conspirador –, já como deputado do Partido Republicano Português, teve uma intervenção particularmente agressiva quando se referia a adiantamentos monetários feitos ao rei Dom Carlos e que este devolvera dias antes.

“Quando se trata de uma Nação tão pobre como a nossa, tão cheia de fome e de desgraças, como Portugal, desviar dinheiro é um crime tão insusceptível de toda a espécie de arrependimento, que não pode o Sr. Presidente do Conselho [João Franco], sem manchar os seus próprios lábios, querer fazer acreditar à Câmara que o rei é também um arrependido em questões de dinheiro”, disse, para momentos mais tarde, imerso num bruaá causado pelos outros parlamentares, rematar: “Por muito menos crimes do que os cometidos por D. Carlos I, rolou no cadafalso, em França, a cabeça de Luís XVI”.

Saberia ele que, anos antes, a mulher do rei que viria a ser morto no regicídio de 1908, Dona Maria Amélia, se preparava para ir ao ginásio com o seu “querido vestido de veludo azul com botões de diamantes”?