Usamos a palavra “raro” só em casos muito específicos. Martin Pistorious é um daqueles que a merece. A ciência não explica, ele não sabe como sobreviveu. Martin só fala através de um computador e viveu 12 anos preso no próprio corpo. O cérebro funcionava, o corpo não. Só os olhos mexiam.

A vida do sul-africano, hoje com 39 anos, é uma daquelas histórias impossíveis de filmes que acabam bem. Está contada no livro “Ghost Boy” — em português “Quando eu era invisível” (20|20 Editora), lançado em Lisboa com a presença do protagonista. Altura para falarmos com o “rapaz fantasma”, porque Martin estava ali, mas ninguém reparava nele.

Foi aos 12 anos que Martin começou a perder forças. Deixou de comer, deixou de caminhar, começou a perder o controlo dos membros. Depois, o cérebro: esquecia-se de regar o bonsai, esquecia-se de momentos importantes, esquecia-se dos rostos.

Os médicos administraram um tratamento para meningite criptocócica e tuberculose cerebral. Não funcionou. Mais testes: nada. Mais exames: nada. Mais médicos e mais hospitais em mais países: nada. Das análises só saía uma conclusão: Martin sofria de um distúrbio neurológico degenerativo. Mas nada se sabia sobre as causas ou sobre prognósticos. Para eles, Martin tinha entrado em estado vegetativo e havia apenas um conselho para os pais: internarem o filho numa instituição e deixarem a doença seguir o seu caminho.

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Depois de um coma de três anos, Martin recuperou a consciência e, aos 19 anos, o cérebro estava intacto. A partir daí, aconteceu o que Martin chama de “mente encurralada num corpo”. Como não falava, todos achavam que também não compreendia nada. “Quando voltei a ganhar total consciência e a estar ciente do que se passava à minha volta, pude ver, ouvir e perceber tudo, mas ninguém se apercebeu disso. Penso que foi neste momento que a realidade caiu sobre mim, de que estava preso no meu próprio corpo. No livro eu falo sobre uma noite em que o meu pai me estava a deitar na cama e eu tentei comunicar com ele para que ele soubesse que eu estava ali e percebi que não era capaz”, lembra.

Não responde, não tem opinião, não pede nem rejeita. Portanto, é como se fosse um fantasma.”Consegues ouvir, ver e perceber tudo à tua volta, mas não tens qualquer poder sobre nada. Esse sentimento da mais completa e total impotência foi provavelmente o pior sentimento que alguma vez tive”, explicou em entrevista ao Observador.

É como se não existisses. Todas as coisas na tua vida são decididas por outra pessoa. Tudo, desde o que vestes até ao que comes e bebes – se comes e bebes – até onde vais estar amanhã ou na semana seguinte. E não há nada que possas fazer em relação a isso”.

Era o cérebro ativo que alimentava o medo de ficar naquele estado para sempre e era o mesmo cérebro que o combatia. Martin arranjava estratégias para não enlouquecer. “Perdia-me, literalmente, na minha imaginação. Imaginava todo o tipo de coisas, como ser muito pequeno e entrar numa nave espacial que me levasse dali para fora. Ou que a minha cadeira de rodas se transformava, como por magia, num veículo voador qual James Bond, com foguetes e mísseis. Por vezes, via como as coisas se moviam, quer fosse a luz do Sol ao longo do dia ou algum inseto a apressar-se por ali. Mas vivia mesmo na minha mente. Tinha também conversas com pessoas na minha mente. Para ser honesto, ainda dou comigo mesmo a fazê-lo agora. Às vezes acabo por falar com a Joanna (a mulher) na minha mente, quando ela não está comigo e depois preciso de fazer um esforço consciente para lhe contar quando estamos juntos”.

A vida de Martin começou a mudar em julho de 2001. Foi avaliado para se estudar a hipótese de uma comunicação alternativa, quando a terapeuta Virna van der Walt descobriu que Martin compreendia melhor o mundo do que se pensava. Levou-o à Universidade de Pretoria (África do Sul) para o submeter a testes. Resultado: Martin tinha afinal consciência de tudo. Os pais reuniram poupanças e compraram um computador para Martin poder comunicar com o mundo.

martin pistorius,

O título original é “Ghost Boy” (2011). O livro está publicado em mais de 25 países.

É a tecnologia que lhe dá literalmente voz: um portátil, interruptores, um comando de controlo e um software de comunicação ligam-no ao mundo. Fazemos uma pergunta, Martin tecla a resposta e o sistema torna-a audível. Admite que as conversas em grupo podem ser “um pesadelo”, devido à rapidez do diálogo.

Hoje os músculos das mãos e dos braços respondem. Mas houve um tempo em que só os olhos mexiam no corpo inteiro. Como é que se expressam sentimentos só com os olhos?, perguntamos. “É extremamente difícil. Dependemos de a outra pessoa ser muito atenta ou conseguir detetar sinais muito subtis. Embora seja possível usarmos os olhos para dizer “sim” ou “não”, também precisamos que alguém coloque as questões certas, da forma certa. Por exemplo, se a pergunta for ‘qual é a tua cor favorita?’, não podemos responder. Mas se for uma pergunta à qual possamos responder com um ‘sim’ ou um ‘não’, como ‘a tua cor favorita é o vermelho?’, então é muito mais fácil indicar uma dessas respostas“.

A observação intensiva ajudou-o a apurar outras capacidades. “Reparava em coisas como o tom da voz das pessoas, a forma como elas se moviam e coisas assim, para ficar com uma ideia de como elas estavam. Fui um observador silencioso e invisível de pessoas. Acabei por aprender as subtilezas e os pequenos sinais que mostram as pessoas como são”, acrescenta.

Martin Pistorious tem hoje 39 anos, licenciou-se em Ciência Computacional na Universidade de Hertfordshire (Reino Unido), é web designer, conduz e é casado com Joanna há seis anos. A mulher que o acompanhou nesta viagem recusa grandes dificuldades e prefere valorizar as qualidades do marido.

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Martin foi sinónimo de fragilidade durante anos. Por isso, perguntamos: Os momentos de fraqueza tornam-nos mais fortes ou mais inseguros? “As duas coisas. Penso que, por um lado, nos deixa inseguros porque somos confrontados com a nossa vulnerabilidade e, muitas vezes, com o facto de que dependemos dos outros. O que, de certa forma, significa que nos encontramos à sua mercê. Mas, ao mesmo tempo, conhecer as nossas fraquezas torna-nos mais fortes, porque sabemos o que precisamos de fazer para alcançar alguma coisa”.

Vamos ser claros. Martin, não teria sido mais fácil desistir? “Sim, provavelmente teria sido. E houve muitos momentos negros em que desisti. No entanto, depois havia algo dentro de mim que queria prosseguir, continuar a lutar. Não sei de onde vem isto, é simplesmente algo dentro de mim que acredita sempre que há um pouco de esperança de que as coisas vão melhorar. Às vezes as pessoas ajudavam nisto, muitas vezes sem elas sequer saberem. Por exemplo, no meu livro eu falo de uma altura em que estava muito doente no hospital e quase tinha perdido a esperança e depois houve alguém que me veio visitar. O simples ato inesperado de alguém que me tinha vindo visitar fez-me saber que eu importava para essa pessoa e fez-me querer continuar”.