São Bento é por esta hora um verdadeiro barril de pólvora. Já passamos o Borgen, é uma espécie de House of Cards, o que leva alguns a dizer que “isto mais parece o Congresso norte-americano”. Dois blocos bem definidos: direita e esquerda. Nos corredores a efervescência era quase palpável: no frenesim das câmaras de televisão, nas entradas e saídas de deputados, num Parlamento hiper lotado. Desde o Governo minoritário de António Guterres que não se via uma agitação assim. Todos querem falar aos jornalistas e todos têm alguma coisa a dizer. O nome de Cavaco Silva está na ponta da língua de todos – para o bem e para o mal.

À esquerda, as palavras são duras. O discurso de quinta-feira do Presidente da República é de uma “enorme gravidade”, um “insulto” para Partido Socialista e revela um “entendimento perverso da democracia”, começou por dizer o deputado João Galamba.

Em declarações ao Observador, o socialista fez questão de sublinhar que espera “estar enganado” – insiste várias vezes nessa ideia, de resto -, mas o discurso de Cavaco Silva parece dar a entender que a Assembleia da República só “tem duas opções”: ou dá posse a um Governo de Pedro Passos Coelho ou dá posse a um Governo de gestão. Mais, continua João Galamba, com o discurso de quinta-feira, o Presidente da República “parece ter apelado à sublevação do grupo parlamentar socialista”.

“Espero estar enganado”, insiste. Porque, “se é assim”, se Cavaco Silva está a tentar dividir o Partido Socialista e a dizer à Assembleia que só tem duas opções e que essas duas opções têm um denominador comum (Pedro Passos Coelho), então trata-se de uma “total subversão” da democracia e o chefe de Estado está a tentar “usurpar” o papel que pertence ao Parlamento. 

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Mas a verdade é que, entre os socialistas, acredita-se que é “fácil” dar a Cavaco Silva tudo aquilo que ele precisa para empossar um Governo de esquerda, depois de o de direita cair na Assembleia: “Pediu maioria, o cumprimento das regras europeias e um acordo escrito, tudo isso é fácil de obter”, ouviu o Observador de fonte da direção socialista no rescaldo da comunicação do Presidente ao país. Logo, e como Cavaco ficou “preso nas suas próprias palavras”, não terá alternativa senão dar, nessa altura, posse a um Governo liderado por António Costa. Se não o fizer estaria a “desrespeitar o Parlamento”.

Ao Observador, Isabel Moreira, também do PS, afirma que “discursivamente, Cavaco Silva teve uma atitude golpista, tentou sequestrar o Parlamento, tentou sequestrar o Partido Socialista, tentou coagir os deputados, ilegalizou três partidos e matou civicamente um milhão de portugueses”, referindo-se ao facto do Presidente da República ter dado a entender que não daria posse a um Governo PS, apoiado por Bloco de Esquerda e PCP.

A este cenário, Pedro Filipe Soares, líder parlamentar do BE, respondeu apenas: “Veremos”. Poucas palavras, apenas uma certeza: o bloquista acredita que Cavaco Silva “deveria ter nomeado já António Costa” para poupar o país a este impasse. De todo o modo, com esta decisão, acabou por dar “mais tempo” a PS, Bloco e BCP para negociarem.

Mas que decisão tomará Cavaco Silva se (ou quando) o Governo de Passos cair? Convida António Costa a formar Governo ou opta por Governo de gestão? “Não faço futurologia”, diz apenas António Filipe do PCP. Já Isabel Moreira não tem dúvidas: “Passe mais tempo ou menos tempo, a esquerda vai ser Governo”. Para já, a esquerda conseguiu, a primeira vitória ao “quebrar a tradição” de fazer eleger um Presidente da Assembleia da República que não pertence ao partido mais votado nas últimas eleições. Pelo menos é o que diz a direita.

Discurso de Ferro deixa a sociais-democratas e centristas “chocados e surpreendidos”

O aviso estava feito há dias: Eduardo Ferro Rodrigues estava disponível para avançar para a Presidência da Assembleia da República e contava com o apoio da maioria de esquerda no Parlamento. Se dúvidas houvesse, desfizeram-se ainda de manhã: Eurico Brilhante Dias, um dos principais pontos da oposição interna a António Costa, não só prometeu cumprir a disciplina parlamentar, como subscreveu a candidatura de Ferro Rodrigues a Presidência da República – ele, António Gameiro e José Luís Carneiro, três elementos que acompanharam António José Seguro na anterior liderança e, ainda, João Soares, que foi o primeiro a lançar o nome de Alberto Martins para o mesmo cargo, logo depois das eleições. O discurso de Cavaco Silva uniu a esquerda e colou o PS.

Ainda com as palavras de Cavaco Silva da noite anterior a ecoar na cabeça de todos, o novo Presidente da Assembleia da República fez um discurso marcado pelo apelo ao compromisso e ao diálogo entre os partidos com assento parlamentar, mas não sem deixar um recado: “Assim como não há deputados de primeira e de segunda, também não há grupos parlamentares de primeira e de segunda, coligações aceitáveis e outras banidas”.

O discurso causou mal-estar nas bancadas da coligação – PSD e CDS foram, de resto, os únicos partidos que não aplaudiram a intervenção de Ferro. Logo a seguir, Luís Montenegro, líder da bancada social-democrata, reagia ao discurso de Ferro, dizendo que o socialista não tinha começado “bem o seu mandato”. “Fiquei com a sensação de que as garantias de isenção e imparcialidade que devem estar na base da atuação do Presidente da Assembleia da República não tenham sido cumpridas”, disse, entre aplausos das bancadas à direita. O ambiente ficava ainda mais quente. 

“Ficámos surpreendidos e chocados. Aquilo não foi um discurso de presidente do Parlamento. Até António Costa fez um discurso mais abrangente do que Ferro e teve palavras simpáticas para Negrão”, confessou ao Observador fonte da direção da bancada do PSD.

No regresso à vida parlamentar, António Costa começou por elogiar Fernando Negrão, candidato derrotado, dizendo que “o mérito não se apura pelo resultado dos votos, mas pela qualidade e ação com que cada um trava o combate político”. Novo bruaá entre as bancadas da coligação Portugal à Frente. 

Direita irritada com discurso de Cavaco Silva

Se numa primeira fase todos viram com bons olhos o discurso do Presidente, um dia depois há quem já ache que Cavaco se “esticou” nas críticas à esquerda, contribuindo para que o desunido PS se unisse – afastando à cabeça o que restava de possibilidade para alguns socialistas se rebelarem dentro do partido. “Foi um erro”, afirmou ao Observador um deputado do PSD. Prova disso foi a eleição, por voto secreto, do Presidente da Assembleia da República, que mostrou os socialistas alinhados com a escolha do líder: só houve dois votos brancos. Esse foi o primeiro teste, e a esquerda passou.

Daí a irritação que se sentiu na ala direita do Parlamento neste primeiro dia de trabalhos. Se os chamados “seguristas” votaram ao lado de Costa numa eleição que é secreta, é impensável que não votem ao lado do líder num eventual chumbo ao programa de Governo da coligação. Por isso o apelo que Cavaco fez ontem à “responsabilidade” dos deputados, num recado que foi lido como diretamente dirigido aos socialistas mais céticos do acordo à esquerda, acabou por ter o efeito contrário. Cavaco “criou demasiada crispação à esquerda”, ouviu o Observador de fonte da bancada social-democrata. E esse foi um erro do Presidente.

Mas entre os sociais-democratas há mais do que uma leitura sobre as entrelinhas da intervenção do Presidente da República e, consequentemente, sobre os próximos passos que Cavaco vai dar. À superfície, a primeira tese que corre na ala direita dos corredores do Parlamento é de que o Presidente “abriu a porta a um Governo de gestão”. “Depois do que disse ontem à noite, não pode viabilizar um Governo de esquerda”, diz ao Observador o deputado social-democrata Nuno Encarnação. Mas mesmo assim há quem admita essa possibilidade, desde que PCP e BE assinem um “compromisso escrito” deixando claro que vão respeitar as metas orçamentais e os tratados europeus. “Aí, Cavaco não terá outra hipótese”, acrescenta outra fonte da bancada parlamentar do PSD.

Para o deputado Pedro Roque, foi um “discurso corajoso”. Mas a questão, para o deputado Nuno Encarnação, é que Cavaco foi “muito claro” nas palavras que escolheu para dizer que voto dos portugueses foi “pró-euro” e que, por isso, os partidos que são tradicionalmente contra as normas europeias devem ficar excluídos. “Está na génese, nem é nos programas eleitorais, é na génese desses partidos ser contra os tratados europeus”, daí que, na sua opinião, Cavaco tenha sido claro: não vai dar posse a um Governo de maioria de esquerda caso o Governo PSD/CDS caia às mãos do Parlamento. Prefere deixar o Governo em gestão? Sim – é essa a leitura que alguns dos sociais-democratas fazem do discurso do Presidente. 

E há uma base para essa tese: é que um Governo de gestão “até é mais controlado do ponto de vista orçamental e financeiro”, porque não pode aprovar medidas de aumento da despesa sem que apresente medidas de igual aumento da receita, para equilibrar. E isto, na opinião do deputado social-democrata, dá força à linha discursiva de Cavaco, que sublinhou a necessidade de não “não dar sinais errados às instituições financeiras, aos investidores e aos mercados, pondo em causa a confiança e a credibilidade externa do país”.

Nem todos, no entanto, fazem a mesma leitura. Fonte da direção da bancada diz ao Observador que, ainda que tenha sido “coerente”, não é liquido que Cavaco tenha dado a entender que prefere deixar o Governo em gestão, caso a prometida moção de rejeição ao programa de Governo seja aprovada pela esquerda. “Se Passos cair, Cavaco tem de dar posse a Costa”, diz a mesma fonte. Não sem antes, claro, ouvir novamente os partidos, dar novos recados e tentar forçar novos entendimentos. Mas nesse caso, a expectativa é de que o Governo de esquerda não dure “mais do que dois ou três meses”, caindo logo às mãos do Orçamento do Estado. Porque aí entra outro fator, para o qual o próprio Presidente alertou, o fator Bruxelas e o Programa de Estabilidade e Crescimento que tem de ser cumprido. Não há entre os sociais-democratas quem acredite que o PS consegue cumprir o Programa de Estabilidade, e consequentemente as metas orçamentais, quando tiver de negociar um Orçamento do Estado à esquerda. Além de que “Bruxelas vai fazer pressão”, dizem.