São dezenas de provas e testemunhos que parecem apontar num único sentido: o Governo de Myanmar, antiga Birmânia, está a conduzir um verdadeiro genocídio contra os rohingya, uma minoria muçulmana a quem o Estado retirou o direito à cidadania em 1982.
Em causa está a crescente onda de violência contra os rohingya, alegadamente planeada e incentivada pelas autoridades birmanesas, através da incitação ao ódio racial e do financiamento de ataques membros e símbolos desta etnia.
Estas e outras conclusões fazem parte de uma investigação da Al Jazeera, conduzida em conjunto com várias organizações que lutam pela defesa dos direitos humanos. De acordo com aquele meio de comunicação, que entrevistou dezenas de testemunhas oculares e teve acesso a vários documentos classificados, não restam grandes dúvidas: “Atendendo à escala de atrocidades e à forma como os políticos falam sobre os rohingya, é difícil não concluir que a intenção [de cometer genocídio] está presente”.
Excerto da investigação da Al Jazeera. As imagens podem ser consideradas chocantes
Penny Green, professora da Universidade de Londres e diretora da International State Crime Initiative (ISCI) explica que o “Presidente Then Sein está preparado para usar o discurso de ódio para satisfazer os propósitos do próprio Governo, que são marginalizar, segregar e diminuir a população muçulmana” em Myanmar. “É parte de um processo de genocídio”, conclui Green.
Como lembra a cadeia de televisão, o Partido para União, Solidariedade e Desenvolvimento (USDP) de Then Sein, suportado pelos militares, enfrenta já a 8 de novembro as primeiras eleições disputadas em 25 anos. E, por isso, está a endurecer o discurso contra a minoria muçulmana para obter ganhos políticos.
Em 2012, quando irrompeu a primeira grande de onda de violência contra os rohingya na cidade de Sittwe, já o discurso de incitamento ao ódio racial tinha criado profundas raízes por todo o país. Naquele ano, mais 140 mil pessoas foram obrigadas a fugir e a maior parte das mesquitas da cidade foram incendiadas. As zonas habitadas pela minoria muçulmana foram reduzidas a cinzas, como recuperava o Público em junho deste ano. Para a ISCI, tudo foi planeado pelas autoridades birmanesas.
“Não foram episódios comuns de violência. Foi violência organizada [e planeada]. Havia excursões de autocarro” para trazer grupos de budistas [extremistas] para participarem na agressão. “Eram servidas bebidas e refeições. Alguém tinha de as pagar. Todos esses sinais sugerem que o ataque foi muito bem planeado”, insiste Penny Green, diretora da ISCI.
A Al Jazeera teve acesso a várias documentos classificados dos serviços secretos e das autoridades birmanesas onde os indícios encontrados parecem reforçar a tese de que é o Governo de Myanmar que está a organizar estes ataques. Uma ex-agente dos serviços secretos birmaneses, que preferiu não ser identificada, explica que “o exército tem controlado esses eventos nos bastidores”, pagando, inclusive, a forças paramilitares para incitarem ao ódio e espalharem o medo e o caos. Existem também evidências de que vários líderes budistas têm recebido dinheiro para apoiarem a causa anti-Islão.
Como recupera aquele meio de comunicação, o USDP enfrenta nestas eleições presidenciais a oposição de vários partidos de inspiração étnica, mas, e sobretudo, a oposição da Liga Nacional para a Democracia (LND), liderada por Aung Sang Suu Kyi, galardoada com o Prémio Nobel da Paz em 1991.
Para se ter uma ideia do quão complexo é o tema, a própria Sang Suu Kyi tem-se mantido em silêncio em relação à questão dos rohingya. De acordo com a BBC, aqui citada pela Business Insider, se Sang Suu Kyi se manifestasse abertamente a favor da causa da minoria muçulmana perderia imediatamente o apoio dos líderes budistas e hipotecaria as hipóteses de vencer as eleições presidenciais.
Nos últimos anos, os grupos budistas radicais têm reforçado a influência na política do país. Ao mesmo tempo, os candidatos muçulmanos têm sido excluídos das próximas eleições e, paralelamente, o Governo birmanês decidiu retirar a cidadania temporária a centenas de milhares de muçulmanos rohingya – que lhes permitiria votar.
A marginalização desta minoria étnica dura há anos, como explica o Público. Desde a independência da Birmânia e, sobretudo, depois do golpe militar de 1962, estes muçulmanos começaram a ser cada vez mais mais perseguidos. Em 1982, por decisão do Governo, foram excluídos da lista de 135 etnias oficialmente reconhecidas e declarados apátridas. Não lhes são reconhecidos quaisquer direitos civis, nem sequer direito a saúde e educação básicos. Estão, na sua grande maioria, confinados a guetos. O Governo de Myanmar, no entanto, não respondeu às várias solicitações da Al Jazeera.