Morreu André Glucksmann. Para a maioria das pessoas, ele é, e a justo título, sobretudo o autor de A cozinheira e o devorador de homens, cujo subtítulo, que diz muito, é Reflexões sobre o Estado, o marxismo e os campos de concentração, publicado em 1975. A data é importante. O arquipélago de Gulag, de Alexandre Soljenítsin, havia sido traduzido em francês em 1973 (o original russo só veria a luz do dia em 1989). Na sua obra monumental, Soljenítsin descrevia, com um detalhe e uma profundidade admiráveis, o horror dos campos de concentração soviéticos. Para os mais distraídos, que nunca tinham ouvido falar de Robert Conquest e de muitos outros, e, sobretudo, sofriam de forte deficiência no contacto com a informação disponível, foi uma revelação. Para uma boa parte da esquerda, e para os comunistas em primeiro lugar, uma blasfémia de proporções inimagináveis (suponho que pelo menos os comunistas continuam a pensar o mesmo). Basta lembrar que, em Portugal, a publicação do Arquipélago pela Editora Bertrand em 1975 foi feita com enorme dificuldade (boicote dos tipógrafos, se bem me lembro), e que na Finlândia, dada a proximidade da defunta União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (“quatro palavras, quatro mentiras”, como dizia Cornelius Castoriadis), o livro não se encontrava nas livrarias.
André Glucksmann, servindo-se amplamente de Soljenítsin, procurou mostrar que o marxismo tinha alguma coisa a ver com o horror. O que acrescentava uma dose suplementar de escândalo à blasfémia original. É claro que a crítica do marxismo e a denúncia de um carácter totalitário inerente à própria doutrina havia já sido levada a cabo por vários autores, o mais célebre sendo, sem dúvida, Karl Popper, em A sociedade aberta e os seus inimigos (1945). Na própria França, filósofos como Claude Lefort (autor também de um livro sobre Soljenítsin) e, sobretudo, Cornelius Castoriadis tinham procedido a uma crítica do marxismo e da União Soviética, mas rodeados de um grande silêncio à sua volta. (Há exemplos anteriores, é claro.) Com Glucksmann, a coisa passou-se diferentemente. Silêncio não houve à sua volta. Criticava-se, à data, o chamado “mediatismo” de Glucksmann e da muito diversa gente que constituía o grupo dos chamados “novos filósofos” (que incluía, entre outros, Bernard-Henri Lévy) – Glucksmann recusou sempre a pertença ao grupo. Mas, atendendo à extraordinária crendice nas virtudes teóricas do marxismo e na excelência da União Soviética em 1975, em França e noutros lugares (Portugal, por exemplo), uma pessoa apanha-se a pensar: bendito “mediatismo”.
Alguns dos méritos do livro de Glucksmann residem numa capacidade muito viva de encontrar os exemplos certos que ilustram as suas teses e numa linguagem apaixonada governada por uma forte exigência de justiça, sem que a paixão ou a reivindicação de justiça padeçam de uma artificialidade qualquer, de um pathos retoricamente induzido . Glucksmann era verídico, e o livro pode-se ler ainda hoje sem que pareça datado. Talvez que o seu livro seguinte, Os mestres pensadores (1977), tenha envelhecido pior. A sua tese central é a de que há, numa certa tradição do pensamento alemão (Fichte, Hegel, Marx, Nietzsche), uma vocação totalitária que passa pelo endeusamente do Estado e pela oposição à figura do indivíduo. Se na Cozinheira se colocava já um problema – o da relação de Marx (Lenine não é problemático, é claro) com o horror totalitário –, esse problema é maior em Os mestres pensadores. Não que a questão não seja em si interessante, nem que falte a Glucksmann razão em a colocar. O problema, um problema que se coloca aos praticantes da história das ideias em geral, consiste no facto de o empreendimento de deduzir uma realidade política a partir de uma doutrina filosófica, e de, portanto, estabelecer uma relação causal forte entre as segundas e as primeiras, vê-se sempre, de um modo ou de outro, afectada de alguma equivocidade e de uma certa indeterminação. Os sistemas filosóficos são coisas demasiado fechadas sobre si mesmas para produzirem directamente efeitos na realidade.
Como quer que seja, as questões de Glucksmann eram boas questões. E as suas causas – como, por exemplo, a defesa da Bósnia na guerra movida pela Sérvia, nos anos noventa – eram causas certas. Basta pensar no apoio aos dissidentes russos ao longo dos anos setenta e oitenta, ou aos boat-people vietnamitas. Reflectir nisso ajuda-nos a lembrar os velhos tempos – não tão velhos tempos assim – das glórias do marxismo-leninismo e a miséria mental dessa época, que alguns persistem em recriar. Os seus livros continuaram a incidir sobre temas que, directa ou indirectamente, se encontravam associados ao sofrimento humano. Com a mesma paixão – que, permito-me insistir, não é nunca uma encenação artificial de convicção.
Mas é talvez mais útil mencionar os seus primeiros textos. Datam ambos de 1967. O primeiro, “Um estruturalismo ventríloquo”, publicado na revista Les temps modernes, é uma crítica do estruturalismo marxista de Louis Althusser, a primeira crítica sistemática deste, a par daquela que é levada a cabo num artigo de Fernando Gil – já agora: passarão em 2016 dez anos sobre a sua morte – intitulado “O marxismo como ciência rigorosa”, que apareceu nos Cuadernos de Ruedo Iberico, também em 1967 (encontra-se republicado em Mediações, 2001). O segundo texto, O discurso da guerra, corresponde à sua tese de doutoramento, feita sob a supervisão de Raymond Aron, de quem era assistente. Trata-se de uma análise das teorias da guerra, sobretudo as do século XX, feita em boa parte à luz da Fenomenologia do Espírito de Hegel. São talvez os seus textos mais classicamente filosóficos.
Pode-se não simpatizar excessivamente com a figura do “intelectual público”. E é verdade que o século XX forneceu péssimos exemplos do género (em matéria de simpatizantes do comunismo, o livro já antigo de David Caute, The Fellow Travellers, de 1973, é capaz ainda hoje de provocar surpresas às almas mais prevenidas no que respeita aos delírios humanos no capítulo). Mas Glucksmann, pela sua coragem em enfrentar os intelectuais bem-pensantes que viam no comunismo o feliz destino da humanidade teorizado por Marx, e, depois, mantendo uma vigilância crítica face às várias imposturas do pensamento e ao cinismo mais ou menos patente de muitos, um cinismo facilitado pela estupidez e a indiferença (um seu livro, A estupidez, de 1985, lida com a questão), escapa largamente a qualquer antipatia que se possa ter pelos ditos “intelectuais públicos”. Glucksmann sabia pôr o dedo nas feridas certas. Como Jean-François Revel (morto em 2006), não pactuava com a dominação mediática daquilo que Montaigne chamava “pensamento a crédito”, no qual florescem os nossos pequenos mestres de pensar. Mas, não se poupando a esforços para combater a estupidez, sobretudo quando ela traz consigo a criação política do sofrimento humano, sabia também que ela retorna sempre e que é ilusório pensar que se afasta, encolhida, em direcção ao passado. O último livro que publicou, em 2014, é significativamente dedicado a Voltaire. Uma muito boa razão para ler ou reler Glucksmann. Talvez até particularmente nos tempos que vivemos, em que se anda entusiasticamente a dar trela à estupidez.