Na vida de um homem, seis meses pode ser muito ou pouco tempo — depende se gosta do que está a fazer, dos sítios onde vai, das pessoas que conhece. Seis meses pode ser o tempo suficiente para conhecer o Iraque de lés a lés, mas também pode ser uma eternidade, sobretudo se um homem não puder sair de um certo espaço. Não lhe passa sequer uma sombra de queixume pela expressão, mas a passagem do tenente-coronel Jacinto pelo Iraque foi assim: esteve seis meses no país mas não viu praticamente nada mais do que o quartel onde trabalhava.

O tenente-coronel Adelino Jacinto pertence à Brigada de Reação Rápida do Exército, a unidade que em maio enviou cerca de 30 militares para a missão internacional liderada pelos Estados Unidos da América, com nome de código Operation Inherent Resolve. Os militares portugueses, localizados na base de Besmayah, a cerca de 35 quilómetros da capital, estiveram encarregues de treinar os militares iraquianos. O primeiro contingente foi substituído há duas semanas. Adelino Jacinto acaba de regressar a Tancos, ao regimento de paraquedistas onde se formou. Do Iraque, dizíamos, pouco viu, mas sabe como funcionam as Forças Armadas do país e a sua maior ameaça, o Estado Islâmico. “Nós lá só nos movimentamos por via aérea” e geralmente de noite, explica porque as forças estrangeiras não têm autorização para “andarem no território iraquiano”. Assim, “estamos confinados aos campos de treino, à zona internacional. Digamos que estamos muito limitados”, comenta ao Observador o oficial, dando um exemplo das limitações: “Não nos permite contactar a população iraquiana”. 

Nesta missão, foi chefe de célula de treino do J7 da Força Conjunta e Combinada do Comando da Componente Terrestre no Iraque. Quando esteve naquele país em 2008, talvez não passasse pela cabeça do militar que voltaria ao país uma outra vez, e outra vez para treinar militares para o combate. Por estes dias, o Iraque está dividido entre a memória de uma guerra dura e a dura realidade de ter de lidar com um grupo terrorista que aproveitou o caos político e social para crescer e espalhar-se pelo território. Em 2008, após anos de guerra fratricida, os Estados Unidos preparavam-se para começar a abandonar o território que tinham ocupado em 2003 na guerra contra Saddam Hussein e o que se queria era fortalecer a frágil autoridade do governo local. “Vivia-se um ambiente de pós-conflito, de retorno à calma, à estabilidade. Ainda havia alguns combates com algumas milícias, mas foi um cenário muito diferente daquele que encontrámos nesta missão”, conta.

“Existe um ambiente de medo, de terror, como é evidente. Nós sabemos do que é capaz o Estado Islâmico, que trabalha muito bem essa imagem em termos de propaganda.”

Em poucos anos, o país mudou radicalmente. “Esta missão agora é para recuperar as Forças Armadas e de segurança iraquianas, reorganizá-las e treiná-las para o combate imediato”, explica o tenente-coronel, salientando essa “ameaça que está presente, que está dentro do território iraquiano” e que se autointitula Estado Islâmico. “As Forças Armadas iraquianas colapsaram em 2014 em termos de organização, equipamento… e depois numa grande derrota, que além de ser uma grande derrota militar, foi psicologicamente importante, que foi perder a cidade de Mossul” para os jihadistas. Quando as tropas da coligação internacional chegaram ao país, era esse o cenário: militares desmoralizados, perdidos, com muita vontade de recuperar Mossul ao Estado Islâmico “o mais rapidamente possível”.

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O tenente-coronel Jacinto, que pertence ao Regimento de Paraquedistas de Tancos, já tinha estado numa missão no Iraque, em 2008. HUGO AMARAL/OBSERVADOR

Adelino Jacinto esteve quase todo o tempo em Bagdad e nos arredores, uma região onde “não se nota muito” a destruição provocada pelos jihadistas. Só a antiga, a deixada pelos americanos e lutas seguintes, a que o tempo ainda não tratou de limpar. Mas nem é preciso falar com as populações ou dar grandes voltas para perceber o estado de espírito dos iraquianos. Confinados aos mesmos locais, às mesmas rotinas, aos mesmos contactos, às mesmas pessoas, os militares portugueses acabaram por compreender o que passa na cabeça dos homens que viram a sua terra invadida por quem diz querer fundar um novo Estado. 

“Nota-se perfeitamente a ansiedade, a preocupação que eles têm de saber se a unidade deles vai combater na área de residência deles ou não, uma vez que eles querem tentar proteger as suas famílias”. E terá sido este o espírito que levou os responsáveis políticos e militares do país a definir a reconquista de Mossul como uma prioridade, logo em 2014. Esse objetivo, no entanto, tem vindo a ser adiado. “Como é evidente, não joga a favor de ninguém este adiamento”, opina o tenente-coronel Jacinto. “Dá mais tempo ao Estado Islâmico para se instalar, para tomar posições defensivas, para influenciar a população.”

O Estado Islâmico “não é um bando de selvagens, há ali muito racional nas decisões que tomam. Há um misto de operações convencionais e de operações de insurgência, ou seja, de guerrilha”.

Uma particularidade da missão atual é que os portugueses estão sob comando espanhol, o que nunca tinha acontecido. Apesar da originalidade, entre os vizinhos europeus houve uma convivência “muito boa, muito positiva”, que continua com o contingente português que já seguiu para o Iraque, em substituição do que o tenente-coronel Jacinto comandava. São mais 30 militares que querem ajudar os iraquianos a combater um grupo que está longe de ser “um bando de selvagens”.