A cena é das conhecidas. Estão dois tipos numa sala com aspeto velho, buracos na parede, pó em todo o lado, sentados em dois cadeirões velhos. O que fala mais está de óculos escuros e gabardine negra e dá nas vistas por isso. Às tantas, abre as mãos e em cada palma tem um comprimido. Diz que o azul nada mudará, enquanto dá a entender que no vermelho está o ganho e que, se o outro o engolir, lhe mostrará “o quão fundo chega a toca do coelho”, na analogia que faz com a Alice no País das Maravilhas. O tipo que mal fala e só ouve decide-se por este comprimido, porque quer dar um safanão à vida e descobrir coisas novas. Se a cena do filme “Matrix” fosse um guião adotado ao mundo da bola, o homem muito falador seria Jorge Jesus e o curioso, Rui Vitória.

Antes do jogo o primeiro fez o que faz sempre. Falou bastante, pôs-se a tentar jogar na mente dos outros e mandou bocas para mexer na cabeça no segundo, que também pouco mudou – ficou na sua, ouviu e limitou-se a responder para o lado e não para o tipo que o espicaçara. Talvez porque, há menos de um mês, o treinador do Sporting deu sem querer o comprimido que fez o do Benfica compreender como poderia vir a Alvalade fazer mal aos leões. O terceira dérbi da época arrancou com os encarnados matreiros e bem juntos a defender, com paciência de sobra a ficarem à espera do adversário no seu meio campo. Queriam dar-lhe a bola por saberem que quanto mais a tivesse, mais o Sporting iria arriscar.

O Benfica esperou, foi roubando bolas pela certa e lançando contra-ataques com a bola a ser passada rasteira, para o pé. Ao primeiro que a equipa montou, a jogada foi ter com quem mais sabe inventar e Nico Gaitán criou um passe longo, da direita para a área, onde Pizzi ajeitou a bola para Mitroglou rematar de primeira. O 1-0 vinha da lógica do comprimido vermelho — a equipa de Rui Vitória jogava e marcava como o Sporting fizera 27 dias antes, no Estádio da Luz. O feitiço era aprendido por outro feiticeiro e, até ao intervalo os leões, sozinhos, quase nunca souberam dar a volta a um jogo no qual os encarnados lhes davam a bola. Mesmo que João Mário ultrapassasse adversários cada vez que sprintava ou que Adrien fosse certeiro nos passes — porque havia Samaris para roubar éne bolas e Gaitán para as segurar lá na frente.

Sozinhos não, mas acompanhados os leões conseguiram marcar quando Luisão e Júlio César se distraíram. O capitão perdeu no corpo a corpo com Slimani, deixou o argelino fugir-lhe nas costas e deu razões ao guarda-redes para sair disparada da baliza. O avançado do Sporting fez-lhe um chapéu mas não teve tempo para calibrar a pontaria — a bola não foi na direção da baliza e Jardel conseguiu cortá-la. Mas enviou-a para bem perto de Adrien Silva, que agradeceu o gesto e rematou de primeira para dar ao jogo o 1-1 que, pelos vistos, seria para durar quase uma hora. Em “Matrix”, o comprimido vermelho vale ao protagonista uma queda num mundo paralelo que afinal é o real e fica com a vida feita num oito que demora a perceber. Em Alvalade, a matreirice de Rui Vitória fez com que o Sporting lhe respondesse na segunda parte.

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Sporting's head coach Jorge Jesus gestures during the Portuguese Cup football match Sporting CP vs SL Benfica Alvalade stadium in Lisbon on November 21, 2015. AFP PHOTO / PATRICIA DE MELO MOREIRA (Photo credit should read PATRICIA DE MELO MOREIRA/AFP/Getty Images)

Jesus trocou Montero por Gelson ao intervalo, encostou o miúdo à direita e por lá manteve João Mário. O Sporting foi bem mais rápido a partir daí. Foto: PATRICIA DE MELO MOREIRA/AFP/Getty Images

Jesus trocou Fredy Montero por Gelson Martins e começou a mostrar o quão fundo ia a toca onde queria enfiar o Benfica. O miúdo encostou-se à direita e João Mário demorou a fazer o que a lógica dizia: manteve-se na direita, deixou Slimani sozinho na frente e deu à equipa mais homens de um lado. A invenção resultou até aos 70’ e os leões foram fintando e cruzando na direita, sem que o avançado argelino aproveitasse uma bola para marcar. O Sporting aumentou o ritmo e o Benfica só o travou com a entrada de André Almeida, que passou a fazer companhia a Samaris nas funções de ajudante dos laterais. O encarnados acalmaram e um trio de passes entre o calcanhar de Mitroglou, o cruzamento do pé direito de Talisca só não deu certo porque faltaram centímetros à cabeça de Gaitán, na área. Os 90’ acabaram com os leões a encostarem o Benfica à área e a verem Júlio César parar todas as bolas que queriam entrar na baliza.

Os rivais enfiaram-se no sétimo prolongamento em dérbis para a Taça de Portugal e continuaram a escavar a toca. Sobretudo os encarnados, que nos primeiros 20 minutos do tempo a mais souberam manter a bola na relva e passá-la a curtas distâncias. Os jogadores descomplicavam tudo com poucos toques livravam-se da pressão do Sporting. Os leões queriam apertar o adversário, mas Samaris tinha calma de sobra para dar bom rumo à bola e Gaitán tinham mais que tempo para pensar o que fazer às jogadas — que a equipa fazia questão, como sempre, em levá-las até ele. Um livre batido pelo argentino até quase dava um brilharete em Alvalade, quando Luisão desviou a bola na área para Raúl Jiménez pedalar numa bicicleta que por pouco não acertou no alvo.

A ousadia acordou os leões e a equipa de Jorge Jesus quis abanar a toca do coelho. Voltou a acelerar o ritmo, puxou das últimas energias que tinha nas pernas e voltou a abusar de Gelson Martins. O miúdo não dizia que não ao risco e aos 110’ sabia que se metesse a bola para o lado lhe chegaria primeiro do que Eliseu, perto da linha. Foi sábio: arrancou, ultrapassou o lateral, cruzou e a bola só não chegou a Slimani porque Jardel se esticou todo para cortar a bola. O problema é que o brasileiro a desviou para Adrien Silva, que à entrada da área foi rápido a rematar de primeira para Júlio César para a bola como até aí não fizera — de forma imperfeita. A defesa do brasileiro atirou a redonda para a frente e deixou Slimani fazer a recarga que deu o 2-1.

Os dez minutos que ainda havia no relógio passaram com o Sporting a tentar tapar a toca e o Benfica a usar todas as pás possíveis para a tentar escavar. Rui Patrício ainda se saiu a dois cruzamentos, mas nada impediu que, 60 anos depois, os leões voltassem a ganhar três jogos aos encarnados na mesma época. Antes de isto se confirmar houve dois penáltis que podiam ter sido e não foram porque o árbitro achou que Gaitán e Slimani o tentaram enganar na área. Rui Vitória teve menos papas na língua que o costuma, disse que não queria “ser comido de cebolada” e “fez barulho” por ter “dois jogadores a caminho do hospital” — Luisão, que partiu um braço no jogo, era um deles. O treinador do Benfica reagiu e respondeu como nunca o tinha feito e pareceu estar fulo por o comprimido vermelho ter dado bons sinais, mas, ainda assim, sem ter resultado.

Porque se no filme não mais se ouve falar no comprimido que não é escolhido, aqui Jorge Jesus arranjou maneira de fazer a equipa engolir um que fez os leões reagirem à forma como o Benfica os estava a bloquear. Resultou, e os acabaram por descobrir que o Sporting lhe continuou a escavar uma toca esta temporada.