Este livro são, na realidade, dois. Não percas a rosa/Ó liberdade, brancura do relâmpago junta no mesmo volume uma republicação do diário de Natália Correia e os artigos que escreveu entre 1974 e 1976 nos jornais A Capital e A Luta. Aos textos originais somam-se vários excertos inéditos, recuperados do espólio da poetisa. A obra revela a forma muito especial como Natália Correia viu a revolução.

Quarenta anos depois do PREC (Processo Revolucionário em Curso), o livro mostra como os acontecimentos foram vistos em tempo real pela poetisa. No excerto que o Observador pré-publica em baixo, relativo ao diário de 25 de Abril, percebe-se que Natália Correia receou durante algum tempo que estivesse a acontecer um golpe militar para manter o regime, e não para o derrubar. O Observador publica também, na fotogaleria em cima, oito imagens tiradas por José António Correia, primo de Natália Correia. O livro é lançado esta terça-feira à noite no Botequim, o mítico espaço nocturno fundado pela poetisa nos anos 70.

Capa NatáliaVegetal

O livro é editado pela Ponto de Fuga, tem 704 páginas e custa 27,75 euros

25 de Abril de 1974

Preparava-me há pouco para entrar no sono pela emoliente alameda dos versos de Ben Ammar de Silves, quando a brusquidão de um telefonema golpeou a elanguescente evocação da amada posta em gazela a olhar com narcisos. É a voz convulsa de um amigo. Entre afogueadas reticências, anuncia-me um estouro de acontecimentos nos quais põe o sublinhado categórico de uma revolução: tanques no Terreiro do Paço; colunas militares em marcha sobre Lisboa; movimentos de tropas em vários pontos do País; a torre de controlo e a pista do aeroporto tomadas por destacamentos da Escola Prática de Infantaria de Mafra; etc… etc… As habituais invenções do desespero?

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Apesar de o elenco de factos que testemunham o estertor do Governo ser impressionante, manifesto ao alvissareiro dessas notícias bombásticas a minha descrença num repente testicular dos nossos militares, cujas bravatas se quedam em conspirações oníricas. O meu cepticismo tem como resposta uma informação enxuta e peremptória:

– Se não acreditas, liga para o Rádio Clube Português. Está ocupado por «comandos».

Abanada pelo rigor deste dado, ligo o transístor e abro o volume de som. A voz do locutor soa numa campânula de mistério:

– «Aqui Comando das Forças Armadas».

Seguem-se apelos indecifráveis. Pede-se aos habitantes da cidade que recolham a suas casas. Invoca-se o bom senso do Comando das Forças Armadas (qual?) para evitar confrontações e derramamento de sangue.

Que Forças Armadas são estas, que, numa voz de abalo, rasgam o solo de uma longa espera desesperada e muda? Acaso trazem uma esperança no formato miserável de um novo desastre?

São 5 horas da manhã. Sou uma coisa inválida de não saber se este dia rompe cheio de graça libertadora ou se o sacodem as tremuras da caquequecia ultradireitista. É difícil acreditar que ainda reste algum fôlego aos comparsas de uma putrefacção que se contém e se prolonga nas reverências reumáticas dos generais ao salazarismo mumificado num marcelismo que os portugueses deitam pelos olhos. Percebe-se que a cal que une os ossos mirrados da ditadura é a agonia. Nos últimos meses, a queda oblíqua do regime entrou aceleradamente na vertical. O motor da decomposição vertiginosa é a ambiguidade de Caetano. Sabe-se que, por debaixo do balcão em que vende as relíquias do culto póstumo de Salazar, envia recados a Spínola por intermédio de um elemento «liberalizante» do Governo, cujo nome calha à justa ao ministro Veiga Simão.

Diário 25-04-74 manuscrito (folha 1 - frente)

Manuscrito do diário de Natália Correia relativo a 25 de Abril de 1974 (Biblioteca Pública e Arquivo Regional de Ponta Delgada)

De facto, não é crível que o contrariado despacho que autorizou a publicação do livro sísmico de Spínola tenha sido assinado por Silva Cunha sem que Marcelo o forçasse a condescender. A ressalva que faz do seu desconhecimento do texto recomendado pelo parecer favorável do chefe do Estado-Maior, general Costa Gomes, indica os suores vertidos pelo ministro da Defesa sob pressão de um Marcelo empenhado em safar-se dos apertos da sua indefinição pela via de um golpe de Estado militar. Ora, a pedrada do Portugal e o Futuro vem colocar nesta perspectiva um Movimento de Capitães com o qual é óbvia a ligação do autor de um livro que incentiva a liquidação do regime.

Um elemento perturbador: as cautelas parecem estar fora das intenções [dos capitães]. Demonstra-o o facto de uma das suas reuniões «clandestinas» ter-se efectuado num teatro de Óbidos, com insólito desdém pelo faro da PIDE.

O capitão A. (ao seu assustadiço gosto do complot e do mistério sacrifico mencionar-lhe o nome), amigo das irritadas horas em que desabafo o meu desprezo por um Exército avalista de um poder liberticida e carunchoso, é quem me traslada os transes de uma conjura que decorre nos fundões da conspirata militar. Ao que me diz, 100 capitães são o motor desse movimento. Reunidos numa casa de campo em Cascais, os seus últimos retraimentos diluíram-se numa palavra de ordem: revolução. Um elemento perturbador: as cautelas parecem estar fora das suas intenções. Demonstra-o o facto de uma das suas reuniões «clandestinas» ter-se efectuado num teatro de Óbidos, com insólito desdém pelo faro da PIDE. Estranhável à-vontade? Ou esquisita distracção da insone eficácia da António Maria Cardoso?

Talvez a resposta esteja em dois episódios que o próprio protagonista me confidenciou numa das suas frequentes vindas a Lisboa. Trata-se de uma figura de peso no foro angolano.

Entre Março e Abril, este meu amigo entra no Hotel Tivoli, onde costuma hospedar-se. Junto da recepção, encontra-se o inspector superior da DGS para o Ultramar, São José Lopes. Alergia do meu amigo, que, lá por Angola, tinha boas razões para execrar essa sombra dos seus passos de destacado simpatizante da UNITA. Descaradamente superior aos vexantes ossos do seu ofício, o afamado «pide» vence a relutância do meu amigo em conceder-lhe a conversa que ele lhe pede, e puxa-o para um canto. Com um ar de «não disfarce, sei muito bem que está ao corrente», diz-lhe que o Governo conta com ele para desempenhar certas funções no novo panorama da política africana. Sim, ia ser alterada, e as trombetas não tardariam a soar.

Este diálogo, tão inconfortável como surpreendente para o meu amigo, completamente alheio a um assunto em que o insólito «não disfarce» do «pide» o presumia envolvido, teve como sequência um segundo acto, decorrido nos primeiros dias de Janeiro em Angola.

Chamado ao palácio do governador Santos e Castro, disse este ao Dr. F. (assim nomeio o amigo que chamo à colação destes informes):

– Prepare-se. Vou confiar-lhe um segredo de Estado. Faço-o, bem entendido, porque contamos consigo para a situação que lhe vou expor e se avizinha. A política ultramarina vai mudar. Na Guiné, Portugal está decidido a «perder a guerra» e a entabular negociações para a independência com a facção que melhor nível de entendimento nos ofereça. Moçambique é, por enquanto, uma incógnita. Logo se verá. Quanto a Angola, negociações imediatas com a UNITA e a FNLA, visando a independência para 1976.

Apelando para os bons ofícios do Dr. F., notório aliado da UNITA, o governador fez-lhe saber, a título de garantir a boa marca destas informações, que elas resultavam de um encontro que tivera em Dezembro com Marcelo, no Forte de São Julião da Barra.

Um projecto que passa pelo conhecimento da PIDE? O tom cúmplice de São José Lopes ao ouvido do Dr. F. permite conjecturar a combinata. Mas é líquido que semelhante programa não poderia executar-se no quadro da política actual, sob a asa direito-ultramarinista do chefe do Estado e seu séquito chorão dos bons velhos tempos salazaristas. Só um golpe militar liquidatário das hostilidades presidencial e ultristas à liberalização da política africana produziria o enquadramento governativo para passar da ideia à acção. Irresistivelmente, este raciocínio vai enganchar-se na tentativa de levantamento nas Caldas da Rainha, que, na madrugada de 15 para 16 de Março, teve como efeito a frustrada marcha de uma coluna motorizada sobre Lisboa. O subentendido da conexão com a projectada viragem na política africana, só viável mediante um golpe militar, acentua-se se realçarmos o cariz spinolista dos militares que arrancaram das Caldas e a relação da tese ultramarina de Portugal e o Futuro com o plano marcelista relativo à modificação da nossa política em África.

Fixo aquela cena de figuras de cera na atmosfera mortuária do salão nobre de São Bento. 14 de Março. A senilidade generalícia ameniza com beija-mão os apuros de Caetano. Tremendos.

Todos estes fios se emaranham num nó: que força fez abortar o movimento das Caldas? A sua própria imaturidade? Presumível, se nos lembrarmos de que a base de Tancos recebeu ordens para bombardear os revoltosos, mas os aviões não levantaram voo. Uma precipitação, portanto, num conjunto que sensatamente se retrai? Neste caso, um preâmbulo desta explosão de escaldantes notícias que vêm sacudir a hibernação da esperança? Sendo assim, as marchas militares que o emissor transmite, entre a leitura de enigmáticos comunicados, marcam a cadência de uma obscura marchandage que chega com asas brancas. No quadro encantado destes clarins, é-me impossível aceitar o regozijo do «pide» São José Lopes, a anunciar ao meu amigo F. a proximidade de acontecimentos decisivos para a alteração da política ultramarina. Estes, porventura, que martelam os caules tensos da minha vigília?

Não. Nesta hora tão longamente desejada, há que ajustar às ideias um vestido de festa. Lavado. Fora com as manchas que os tremores da agonia marcelista lançam nas hipóteses que formulo sobre a mão benéfica que apedreja o charco!

Fixo aquela cena de figuras de cera na atmosfera mortuária do salão nobre de São Bento. 14 de Março. A senilidade generalícia ameniza com beija-mão os apuros de Caetano. Tremendos. No auge das suas aflições, a cólera caquéctica do Presidente da República contra o autor de Portugal e o Futuro e a bênção marcelista, dada por trás da cortina, a tão terrível infracção dos dogmas que Salazar deixou enterrados como enguias na mente lodosa dos seus gerônticos testamenteiros. Nos bastidores da cena fúnebre, um Caetano enrascado, a tentar escudar-se contra os irados humores presidenciais na vénia militar na qual contava ver, em reverente dobre de espinha, Spínola e Costa Gomes. Mas, em vez dos ósculos que lhe recauchutariam a rebentada manha, recebeu Caetano a bofetada da ausência com que os dois generais ripostaram à farsa para que Marcelo os convocava. Nessa mesma tarde, o presidente do Conselho exonera-os das suas funções. Na madrugada do dia seguinte, os militares spinolistas desafrontam o General do Monóculo, violentando nas Caldas da Rainha o calendário do putsch. Eis a versão mais apetecível para ancoradouro das minhas esperanças suspensas do confuso noticiário que cruelmente omite as forças que o lançam no ar.

As marchas militares são cortadas pelo emissor do Comando das FA, e inicia-se uma transmissão de canções proibidas. A minha comoção atinge o auge.

São 6 horas da manhã. Há uma asfixiante intemporalidade neste tempo distendido por uma macerante expectativa que não cabe entre paredes. A leitura de um comunicado interrompe a cadência irritante da música marcial. Os indícios tornam-se mais nítidos. Colocam-se no campo dos bons auspícios. As Forças Armadas que ocupam os estúdios do RCP acusam o recrutamento abusivo da DGS e da Legião Portuguesa. O alvoroço redobra-me a ansiedade. A iminência de ver florir por fora a Primavera que sempre trouxe dentro do meu amor à liberdade morde-me o coração como uma alegria insuportável. Joguei sempre no impossível. E agora? Só os medíocres sabem o que fazer com a vitória. Pois haverá duas. A vitória que dará aos medíocres a oportunidade de estragarem o impossível, na frustrada demonstração de que é possível a felicidade dos povos. É este, de resto, o destino das revoluções. Quanto à minha vitória, ela oferece-me o ensejo de, no impossível possibilitado, desmascarar esta pretensão dos medíocres, com os olhos postos em impossíveis a haver. Por outras palavras: não me imagino a frequentar as aulas de qualquer revolução vitoriosa. (…)

São 6 e 45. As marchas militares são cortadas pelo emissor do Comando das FA, e inicia-se uma transmissão de canções proibidas. A minha comoção atinge o auge quando ouço cantar um poema em que desabafei o meu nojo pelos ratos da censura salazarista: «Queixa das Almas Jovens Censuradas». Empolgo-me com essa mediocridade do meu planfletarismo juvenil. Eu, que, dobrado o cabo das íntimas tempestades que no poeta rasgam o imo da verdadeira criação, aborreço esses exibicionismos metrificados da justiça social. Mas há uma estética efémera da exaltação colectiva que eleva à categoria de belo aquilo que, na ordem das coisas em repouso, ofende o bom gosto. E tudo isto é exaltante, porque em tudo isto se desprende para mim o canto livre de Afrodite que, em ondas de ouro, se propaga na cidade.

Abro a janela. Rompe a estrela da manhã.”