Em Portugal, temos “A Criada Malcriada”, os brasileiros têm a filha malcriada da criada, no filme “Que Horas Ela Volta?”, de Anna Muylaert. Ela chama-se Jessica, vem do interior do Brasil fazer o exame de admissão à faculdade e fica com a mãe, Val, na casa da família abastada de São Paulo onde esta, 20 anos antes, começou por ser babá (ama) do filho único da família e agora é criada. Val é a típica serva bondosa, paciente e fiel, e, para todos os efeitos, mãe substituta de Fabinho, o menino da casa. Só que Jessica já não é como ela. Não quer servir nem ficar amarrada a um trabalho menor para o resto da vida. E tem pêlo na venta. Recusa partilhar o quartinho interior da mãe e instala-se numa das suites de hóspedes, trata Fabinho como igual, desperta as hormonas do dono da casa e a antipatia da mãe, não respeita as distâncias e as diferenças de posição social e embaraça Val perante os patrões. Bem-vindos à luta de classes com balanço brasileiro, em condomínio de luxo oba-oba.
(“Trailer” de “Que Horas Ela Volta?”)
Há 15 anos, em 2000, Fernando Meirelles, realizador de “Cidade de Deus”, e Nando Olival fizeram um filme chamado “Domésticas”, onde cinco criadas de famílias de São Paulo falam dos seus trabalhos, das suas vidas, frustrações, desejos e sonhos. “Que Horas Ela Volta?” é o filme de uma nova geração, a dos filhos das criadas de “Domésticas”, que têm horizontes mais largos do que as mães e os pais. E teve, como é natural, grande impacto no Brasil, onde foi muito discutido e escolhido para representar o país na pré-nomeação ao Óscar de Melhor Filme Estrangeiro. O tema das relações laborais e sociais traduzido numa história de sala e cozinha, de patrões e empregados, viaja sempre bem, encontrando eco, reconhecimento e identificação um pouco por toda a parte. Por isso, “Que Horas Ela Volta?”, além de ter sido premiado em festivais como Berlim e Sundance, está também a conhecer muito sucesso fora de portas.
(Entrevista com a realizadora Anna Muylaert)
Apesar de ter sido rodado num punhado de semanas, o filme teve uma gestação longa de quase 20 anos, e passou por várias encarnações. A história originalmente imaginada por Anna Muylaert não tem nada a ver com a que encontramos em “Que Horas Ela Volta?”. Na penúltima versão, Jessica vinha para São Paulo ser cabeleireira, e acabava por se tornar ama como a mãe. Mas a realizadora quis que a personagem, e o filme com ela, fossem o reflexo de um Brasil em transição. E esse Brasil é o do PT dos governos de Lula e Dilma, que têm investido pesada, e polemicamente, na promoção e mobilidade social das classes trabalhadoras para a formação de uma nova classe média que lhes seja politicamente favorável. Lá no fundo, “Que Horas Ela Volta?” é um enredo de telenovela da Globo com um forte enxerto de actualidade político-social.
Não contente em meter fundo o dedo na ferida da estratificação social, das relações laborais, e das diferenças de classe de uma sociedade ainda tão patentemente desigual como a brasileira, Anna Muylaert também escarafuncha com força. Mas estas coisas têm a sua complexidade, e o filme não está isento de condescendências, simplismos e facilidades. A rebelde Jessica não sabe que não nos podemos comportar em casa alheia como na nossa, nem que seja por uma questão de cerimónia, e pisa mesmo o risco; a patroa dondoca de Val é convenientemente antipática e odiosa (em especial quando percebe que a filha da criada conseguiu entrar na faculdade e o seu filho não): e a cena final de Val na piscina é de um simbolismo de babar no canto da boca.
(Entrevista com Regina Casé)
Só que há outra importante dimensão na história que a realizadora diz ser-lhe central, admitindo que, com o debate que se levantou no Brasil sobre o seu lado social, foi secundarizada. É a dimensão emocional, dos afectos, mais clara no título internacional, “The Second Mother” e que é figurada na relação mãe-filho existente entre Val e Fabinho. Tendo deixado a filha ao cuidado da tia em Pernambuco quando rumou à cidade na juventude, Val afeiçoou-se como uma segunda mãe ao rapaz, deixado ao seu cuidado pela mãe socialite. Este (note-se que o título do filme é uma pergunta que ele faz sobre a mãe) vê em Val muito mais do que uma simples criada: vê uma mãe por ausência constante daquela que o deu à luz. Quando Fabinho, depois de falhar a entrada na faculdade, vai para o estrangeiro, e Val sabe pela filha que tem um neto na terra, sente que os laços que a ligavam àquela casa se desfizeram em definitivo, e agora é à sua família que tem que se dedicar. A sua “tomada de consciência” tem tanto, ou até mais, a ver com isto, do que com qualquer epifania de classe.
(Tema musical do filme)
O filme, felizmente, nunca se torna comicieiro nem resvala para o panfleto, e lida com a vida vivida, o mundo que nos rodeia, as pessoas com quem convivemos e as coisas que nos dividem e unem, com um à-vontade e uma naturalidade que o cinema português (ainda não) consegue atingir, beneficiando ainda de interpretações com a homogeneidade na qualidade a que os brasileiros já nos habituaram, até na telenovela mais média. No papel de Val, Regina Casé, recém-regressada ao cinema após uma ausência de mais de 10 anos, dá consistência humana e verosimilhança dramática a uma personagem que de outra forma não passaria de um cliché telenoveleiro ou politiqueiro, mas sempre pronto-a-servir. É nela, e com ela, que bate o coração de “Que Horas Ela Volta?” .