Formalmente, a China tem apenas uma aliança militar. Assinado em julho de 1961, o acordo tem como nome oficial “Tratado de Amizade, Cooperação e Assistência Mútua entre a República Popular da China e a República Democrática Popular da Coreia”. Essa mesmo: a Coreia do Norte, que na quarta-feira anunciou ter feito um teste com uma bomba de hidrogénio.

Mas, apesar desta parceria estratégica, a China foi apanhada de surpresa na quarta-feira, como o resto do mundo, quando soube que um sismo de 5,1 na escala de Richter tinha sido detetado na região, que mais tarde as autoridades norte-coreanas disseram tratar-se de um teste nuclear — a confirmar-se, o quarto dos últimos dez anos.

Mais tarde, no mesmo dia o ministério dos Negócios Estrangeiros da China emitiu um comunicado onde manifestou que se opõe “firmemente” a esta escolha de Pyongyang e onde se coloca ao lado da “comunidade internacional”:

Hoje, a República Democrática Popular da Coreia fez de novo um teste nuclear desrespeitando a oposição alargada da comunidade internacional. O Governo chinês opõe-se firmemente a isso.”

Mais tarde, o Conselho de Segurança da ONU, do qual a China é um membro com assento permanente, anunciou que iria discutir a aplicação de ainda mais sanções à Coreia do Norte.

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Uma palavra áspera por parte da China à Coreia do Norte deveria ser causa de preocupação em Pyongyang. Afinal, é de Pequim que a estabilidade o regime de Kim Jong-Un depende. Desde a queda da União Soviética, a China é de longe o maior parceiro estratégico e comercial da Coreia do Norte. E, em agosto de 2012, a China anunciou a criação de um fundo de investimento de quase 500 milhões de doláres na Coreia do Norte — uma estratégia que Pequim adotou, depois de perceber que Pyongyang não tinha nem intenção, nem meios, para pagar os empréstimos que lhe foi fazendo.

É improvável que o ditador norte-coreano, Kim Jong Un, não soubesse que a sua nova aventura iria provavelmente resultar em ainda maiores dificuldades para o seu país no campo diplomático, incluindo com a China. E é aí que reside uma questão basilar: porque é que o fez?

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Kim Jong-Un subiu ao poder depois da morte do seu pai, Kim Jong Il, que liderou a Coreia do Norte entre 1997 e 2011

Para Timothy Heath, investigador do think tank norte-americano RAND e sinólogo, Kim Jong-Un demonstrou na segunda-feira que conseguiu um feito mais do que improvável: “Tudo isto tornou bastante claro que a Coreia do Norte está na mó de cima na sua relação com a China”.

Isto porque, para Heath, “a China está de mãos atadas quanto à Coreia do Norte”, graças ao seu desejo de manter o controlo na região a todo o custo.

Imagine-se um cenário em que a China não só aplica sanções à Coreia do Norte como as cumpre — até hoje, já fez a primeira, a segunda nem tanto. “A Coreia do Norte é tão dependente da China que, se os chineses cortarem toda a ajuda, se suspenderem todas as transações e os investimentos que têm lá, o regime não ia conseguir sobreviver. Mais tarde ou mais cedo, desaparece”, diz Heath. Aí, defende o investigador, haveria uma situação de caos temporário. “Podia haver uma guerra civil mesmo às portas da China, o que seria uma situação muito difícil de gerir ao nível diplomático, ia haver refugiados em fuga…” A lista de consequência é extensa, mas, para Pequim, bastaria uma para tornar a situação dramática: “O status quo iria mudar e a China deixaria de ter qualquer controlo na península [coreana]”.

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Xi Jinping, Presidente da China, nunca visitou a Coreia do Norte desde que assumiu o poder em 2012. Mas já passou pela Coreia do Sul duas vezes.

Esta não é, de todo, a primeira vez que o estado eremita antagoniza a China. No passado recente, contam-se várias situações em que Pyongyang rejeitou as sugestões de Pequim — a principal foi a tentativa de levar adiante uma reforma económica na Coreia do Norte, ao estilo de Den Xiaoping, o líder que governou a China entre 1978 e 1992 e que levou o país a aproximar-se do capitalismo e a fazer reformas económicas basilares. Kim Jong-Un terá negado essa hipótese. Em 2013 não hesitou em executar o seu tio Jang Sung Taek, o mais experiente e estimado interlocutor da China na Coreia do Norte. E apesar de ter aderido às Conversações a Seis (equipa de discussão da desnuclearização da península coreana, onde estão a Coreia do Norte, Coreia do Sul, Rússia, EUA, Japão e a China), este grupo já não se reúne desde 2007, tornando-se claro que Pyongyang está cada vez mais longe de adotar as suas indicações.

Por outro lado, Pyongyang não terá levado a bem o pequeno incidente que envolveu as Moranbong Band, o conjunto musical feminino criado pelo regime norte-coreano para contrariar o avanço do K-Pop sul-coreano. Em dezembro de 2015, menos de uma semana depois de Kim Jong-Un ter anunciado que a Coreia do Norte tinha chegado à tecnologia necessária para fazer uma bomba de hidrogénio, a girls band foi impedida de atuar em Pequim e voltou abruptamente para o seu país. Mais simbólico ainda é o facto de o Presidente chinês, Xi Jinping, ter feito duas visitas oficiais à Coreia do Sul, desde que tomou posse em 2012, e nenhuma à Coreia do Norte, onde envia representantes oficiais.

This picture taken on December 10, 2015 shows members of North Korea's Moranbong band walking out of their hotel in Beijing. North Korea's premier pop group, the all-girl Moranbong band formed by leader Kim Jong-Un, is electrifying audiences in China in shows aimed at harmonising out-of-tune ties between the traditional allies, reports and the venue said on December 9 -- but tickets are not available to the public. CHINA OUT AFP PHOTO / AFP / STR (Photo credit should read STR/AFP/Getty Images)

Em dezembro, a banda sensação da Coreia do Norte teve um concerto cancelado em Pequim depois de Kim Jong-Un anunciar que tinha uma bomba de hidrogénio (STR/AFP/Getty Images)

A Coreia do Norte parece decidida em lembrar à China que, caso se afaste do seu aliado na região, as consequências podem ser graves. O anúncio do alegado teste da bomba de hidrogénio é apenas mais uma situação — embora de gravidade significativamente maior do que as anteriores — em que a Coreia do Norte desafia as recomendações chinesas. E, para Heath, pode até ser um instrumento de “chantagem”. “A Coreia do Norte quer claramente algo da China e está a fazer chantagem. Já tornou claro que não vai querer abrir mão do seu programa nuclear. Eles estão a fazer barulho só para a China se lembrar de que eles podem criar-lhes, mesmo que seja de forma indireta, grandes danos”, argumenta o investigador especialista em defesa. “Por isso, a Coreia do Norte vai sempre esperar que a China lhe dê alguma coisa ao deixar claro que, a qualquer momento, pode fazer alguma surpresa desagradável.”

A explosão de quarta-feira é, por isso, uma jogada ideal, do ponto de vista de Kim Jong-Un e daquilo que são os seus objetivos permanentes: garantir que se eterniza no poder; promover uma sensação de segurança e de poderio militar junto do seu povo; manter o seu programa nuclear e conseguir ganhar alguma coisa com a China. O ditador norte-coreano podia ter ficado imóvel, mas decidiu ir a jogo. E esta é a sua única jogada possível — o que denuncia, além de um sentido de estratégia, desespero. “Se as coisas estivessem boas para o seu lado, Kim Jong-Un não teria feito nada desta dimensão”, interpreta Heath. “Tem tanto de inteligente como de desesperado.”

Para o investigador, Kim Jong-Un arrisca agora que a sua relação com a China piore, embora de forma sobretudo cosmética e temporária. Ainda assim, pode ter consequências fatais para a população do seu país — segundo as Nações Unidas, 84% da população tem dificuldades no acesso a comida. Algo que, segundo Heath, não parece estar na equação de eternização no poder do ditador norte-coreano: “Para Kim Jong-Un, as armas nucleares dão estatuto, importância e um enorme prestígio. E parece impossível que ele esteja disponível a abrir mão disso, mesmo que ponha em risco o bem-estar do seu próprio povo”.