Título: A Queda de Wal Street
Autor: Michael Lewis
Editora: Lua de Papel
Preço: 15,90

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A dupla cómica britânica The Long Johns criou em 2008 dez minutos certeiros e impagáveis sobre a crise do subprime. É a versão curta da história. A Queda de Wall Street, de Michael Lewis, é a versão longa de uma parte dessa história.

Michael Lewis começou a sua vida profissional no banco de investimento Salomon Brothers, nos anos financeiramente inovadores da década de 80, em que foram plantadas muitas das sementeiras cujos frutos temos colhido. O Salomon Brothers foi nessa época um emblema da transição da velha Wall Street do que seriam entre nós sociedades civis ou sociedades por quotas, empresas familiares ou privadas, para as sociedades anónimas cotadas e transacionadas na Bolsa de Valores – da transição da responsabilidade dos “donos” para a irresponsabilidade dos “gestores”, cujos interesses passaram a estar tantas vezes em conflito com os dos accionistas e dos clientes. Era um mundo em que “as pessoas diziam coisas como ‘a palavra de um homem é a sua obrigação'” – na pitoresca versão de my word is my bond da tradução portuguesa deste livro, muitas vezes lunática ou descuidada, apesar da “revisão técnica”, e na qual também, por exemplo se contrapõem “sociedades” e “empresas” também ditas no mesmo parágrafo “empresas públicas” (o que é formar-se “com honras”, a Oppenheimer&Co terá sido mesmo “uma das últimas sociedades de Wall Street”, os ratings “fazem-se”?). Assim se torna ainda mais ininteligível o que já não é fácil de explicar a ninguém e ainda menos a quem não conheça com um mínimo de intimidade a matéria. Há na versão portuguesa de The Big Short incontáveis exemplos de contra-sensos, erros e infelicidades de estilo. Não os vamos contar.

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Lewis saiu do Salomon – um inestimável posto de observação onde passou três ou quatro anos – para escrever o inolvidável Liar’s Poker, o seu primeiro livro, que festejou vinte e cinco anos em 2014 e teve a sua reedição comemorativa, com um posfácio novo do autor. Como lhe disse com certo despeito o seu antigo manda-chuva no Salomon, John Guttfreund: “A porra do seu livro destruiu-me a carreira e construiu-lhe a sua.” (Foi num almoço partilhado pouco antes da publicação de A Queda de Wall Street que é contado no epílogo, “Tudo está correlacionado” – Está tudo ligado?). Daí para cá, Guttfreund foi pastar e Michael Lewis adquiriu, com mérito mas algum exagero, o estatuto de “melhor jornalista americano na área das finanças”, nas palavras de uma das badanas da edição portuguesa. Talvez fosse por ser mais novo quando li Liar’s Poker, ou os tempos fossem outros, mas nunca tornei a ler com o mesmo gosto nenhum dos vários livros de Lewis que lhe sucederam nem tornei a encontrar em qualquer deles a contagiante vibração dessa opera prima.

WASHINGTON, DC - APRIL 04: Michael Lewis, a financial journalist and author, participates in a discussion in the Newsmaker Series of talks at George Washington University on April 4, 2014 in Washington, DC. Lewis's latest book, "Flash Boys: A Wall Street Revolt," tells the story of the Canadian banker who uncovered the underhanded and illegal practices carried out by some high-frequency traders on Wall Street. (Photo by T.J. Kirkpatrick/Getty Images)

Michael Lewis coeçou a vida profissional no Salomon Brother

A Queda de Wall Street é mais uma vez, em todo o caso, uma galeria fascinante de retratos – Lewis é um emérito retratista jornalístico. Sem ter a pretensão de ser a explicação definitiva da crise financeira da primeira década deste século, explica em pormenor uma parte importante dela, em pormenor demais, se calhar, para quem não seja especialista ou especialmente curioso. Explica-o em contraponto de uma história pouco conhecida – a de vários dos novos multimilionários cuja fortuna foi feita sobre a ruína dos outros: todos os que apostaram na derrocada de uma gigantesca pirâmide construída sobre areia (é uma tradição das pirâmides) – e de cujas extravagantes mansões a revista americana Vanity Fair publicou há uns anos uma impressionante galeria fotográfica. Esses homens perceberam o que outros não perceberam ou não quiseram perceber, porque continuaram a ser premiados pelo seu insucesso e raramente castigados pela sua trágica inépcia. Como pensava uma analista que deu muitas pistas a Michael Lewis, os responsáveis por muito daquele desvario ou eram estúpidos ou mentirosos e ela não acreditava que fossem todos mentirosos (como contraprova vejam-se algumas das alucinantes entrevistas do documentário “Inside Job” – “A verdade da crise”, que apesar da sua parcialidade ilustra muita coisa).

É desta rendosa aposta na hecatombe que vem o título original deste livro, The Big Short. Apostar na descida de um título, ou seja do que for, vendendo hoje o que nos foi emprestado para mais tarde o devolver comprado mais barato é a fórmula elementar de selling short, que se complicou muito mas não é uma invenção recente. Num trecho com mais de cem anos do fabuloso contista americano O’Henry narra-se um short mal sucedido. A cena é o gabinete do sr. Dodson. Entra o amanuense Peabody: “É o sr. Williams, sr. Dodson, da Tracy & Williams, que está ali fora. Vem liquidar aquilo das ações. A alta caiu-lhe em cima, lembra-se o sr. Dodson?” “Como está isso cotado hoje, Peabody?” “Cento e oitenta e cinco, sr. Dodson.” “Então é isso que ele paga.” “O sr.Dodson dá licença …”, disse Peabody, com uma certa hesitação. “Desculpe-me falar nisso mas estive a falar com o Williams. Ele é um velho amigo seu e o sr. Dodson pode dizer-se que tem na mão todo este papel. Pensei se o sr. … isto é, pensei que o sr. talvez se não lembrasse que ele lhe vendeu o papel a noventa e oito. Se ele liquida ao preço de mercado, vai-se-lhe tudo quanto tem e ainda por cima, coitado, tem de vender a casa, e a mobília e tudo, para lhe poder entregar as ações.” “Cento e oitenta e cinco é o que ele paga, disse o Dodson.” (o conto é “Os caminhos que tomamos” e a tradução usada a da revista Athena em que foi publicada nos anos 20 do século passado.)

Os Williams, Peabodys e Dodsons sempre estarão connosco.

Miguel Freitas da Costa foi cronista no Expresso, no Público, no Diário Económico e no DN, entre outras publicações. Foi director editorial da Guimarães Editores e secretário-geral da Associação Portuguesa de Editores e Livreiros. É tradutor.