Neste momento as perguntas continuam a ser mais do que as respostas em relação ao ensaio clínico que correu mal em França. A empresa portuguesa Bial, que criou a molécula, emitiu um comunicado na passada sexta-feira, referindo que “está fortemente empenhada em assegurar, em primeiro lugar, o bem-estar de todos os participantes neste ensaio, bem como em apurar de forma rigorosa e exaustiva as causas que estarão na origem desta situação”, mas não pode dar mais detalhes sobre a investigação.

Todas as comunicações oficiais estão agora nas mãos do Ministério dos Assuntos Sociais, Saúde e Direitos das Mulheres francês, que espera ter o primeiro relatório das investigações em curso no final do mês. Mesmo a Biotrial, o laboratório onde decorriam os ensaios clínicos, poucos esclarecimentos tem feito.

Este sábado, o diretor executivo da Biotrial, François Peaucelle, saiu em defesa da empresa portuguesa, conforme a agência noticiosa francesa AFP. “Já trabalhamos com a Bial há seis anos. É um laboratório sério e reconhecido.” Confirmando que este grupo estaria a tomar a dose mais alta do ensaio, François Peaucelle acrescentou ainda que estavam longe de atingir a dose máxima.

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“Os representantes da empresa Bial não estão em posição de fazer uma declaração oficial [aos meios de comunicação social] hoje [sábado] porque estão ocupados a responder às solicitações da investigação, nomeadamente, às audições. Mas é intenção dos representantes da empresa emitir um comunicado em breve”, disse o diretor executivo da Biotrial. Os inspetores da Polícia Judiciária francesa recolheram os lotes do fármaco na sexta-feira e passaram o fim de semana a interrogar as pessoas que estiveram envolvidas no projeto e a recolher documentação relativa ao mesmo.

O que se sabe?
  • Oito pessoas participavam numa parte do ensaio clínico que teve início no dia 7 de janeiro. Estava previsto que seis tomassem o fármaco e duas tomavam um placebo (que se assemelha ao fármaco, mas sem a componente que se pretende testar).
  • Todos os voluntários que tomaram a molécula foram hospitalizados. O primeiro acabou por morrer, quatro têm danos neurológicos e um dos voluntários não apresenta sintomas (está hospitalizado por precaução).
  • As quatro pessoas que se encontram internadas com problemas neurológicos estão estáveis, mas três delas podem apresentar danos irreversíveis.
  • Nenhuma das 90 pessoas, envolvidas no ensaio clínico, que já tinha tomado a molécula, apresentou até ao momento qualquer tipo de sintomas equivalente aos dos doentes internados.
Informação não consistente
  • A Bial refere, que antes deste grupo, teriam sido sujeitos ao ensaio clínico 108 pessoas (com estes oito daria 116). A ministra da Saúde francesa, Marisol Touraine, fala em 128 voluntários.
  • “Uma nova molécula, na área da dor (inibidor da enzima FAAH).” Foi assim que a Bial descreveu a molécula, sem acrescentar pormenores. Outros órgãos de comunicação falam no composto BIA 10-2474 e a ministra da Saúde refere que a molécula serve para “tratar transtornos de humor, de ansiedade e de movimento, associados a doenças neurodegenerativas”.
  • A ministra da Saúde referiu que os ensaios pré-clínicos terão sido feitos em chimpanzés, mas Alan Boyd, presidente do Colégio de Farmacologia Médica da Ordem dos Médicos britânica, diz que a informação deveria ser confirmada, porque é muito raro usar-se chimpanzés hoje em dia. Jackie Hunter, diretor executivo do Conselho de Investigação para a Biotecnologia e Ciências Biológicas (BBSRC, na sigla em inglês), concorda que o uso de primatas é raro e que, em condições normais, se usaria outro grupo que não os chimpanzés – por exemplo, o género Macaca.
O que ainda não se sabe?
  • Qual a estrutura da molécula?
  • Será que esta molécula, ao contrário de outras moléculas da mesma família, era um inibidor enzimático irreversível?
  • Que dosagem foi tomada pelos voluntários? Tomaram uma dose única ou múltiplas doses?
  • Todos os voluntários começaram o ensaio ao mesmo tempo?
  • Já foram realizados testes de qualidade ao lote que estava a ser usado com este grupo?
  • Foi possível demonstrar, nos voluntários internados, que a molécula foi responsável pelos sintomas?
  • Já foram despistadas outras causas para os sintomas, como uma infeção bacteriana?

O que têm os especialistas a dizer sobre esta situação?

Embora os inibidores de FAAH ainda não estejam no mercado, este não é o primeiro ensaio clínico de fase I a esta família de moléculas. Um desses ensaios foi feito com uma molécula produzida pela Pfizer, como recordou Munir Pirmohamed, vice-presidente da Sociedade Britânica de Farmacologia. Este composto foi bem tolerado pelos voluntários, mas num ensaio de fase II (para testar se era útil) não se mostrou eficaz no tratamento da doença e foi abandonado.

“A gravidade surpreende-me tratando-se de um canabinoide. Em geral, não há risco de coma nem de morte cerebral. Mas nunca se está a salvo do efeito de uma dose”, diz, citado pelo JDD, Frédéric Sedel, neurologista e presidente da MedDay – empresa farmacêutica especializada no tratamento de distúrbios do sistema nervoso.

Portanto, há que esclarecer o que realmente aconteceu – visto que 90 pessoas já tinham tomado esta molécula sem apresentarem sintomas. “Como tantas pessoas a receberem o tratamento experimental e tendo em conta que outro inibidores de FAAH semelhantes já tinham sido testados, há uma necessidade urgente de transparência que transcende a acusação: é preciso detalhar o que aconteceu de errado e a natureza das complicações médicas que os voluntários desenvolveram – e que levou à morte de um deles“, disse Carl Heneghan, professor de Medicina baseada em evidências, na Universidade de Oxford.

Se este ensaio tiver seguido o modelo normalmente usado, terá começado com tomas únicas de doses muito mais que foram aumentando gradualmente, e depois tomas múltiplas cuja dosagem também foi aumentado ao longo do tempo. Stephen Alexander, membro da Sociedade Britânica de Farmacologia, avança uma hipótese, que admite ainda estar no campo da especulação: “É possível que este composto tenha pequenos efeitos noutro alvo muito diferente da FAAH, o alvo principal”. E à medida que se aumentou a dosagem, não foi o alvo FAAH a apresentar efeitos secundários, mas o outro alvo que ainda ninguém identificou e que provavelmente não sabem que existe.

“As concentrações do fármaco no sangue podem aumentar mais depressa do que a dose administrada”, diz François Faurisson, farmacologista, responsável pelas formações para as associações de pacientes do Inserm, citado pelo jornal francês Les Echos. Uma parte da da substância administrada pode ser captada e armazenada em certos tecidos que atuam como uma “esponja”. A quantidade da molécula que está verdadeiramente ativa, ou seja, aquela que é encontrada no sangue, é baixa, enquanto se vai acumulando nos tecidos. Quando se atinge o ponto máximo da concentração suportado por esse tecido ou pelo organismo, os efeitos podem ser realmente prejudiciais à saúde e podem aparecer de forma brusca.

Ben Whalley, também membro da Sociedade Britânica de Farmacologia, acrescenta que outro fator pode ter sido um erro humano em que os voluntários receberam uma dose muito maior do que aquela que os técnicos achavam que lhes estavam a dar. Ou, segundo refere o jornal JDD, até pode ter sido uma contaminação durante a produção ou transporte – o princípio ativo (molécula) seria produzida na Hungria e o fármaco para o ensaio preparado em Itália.

Ao Observador, Miguel Guimarães, presidente Conselho Regional do Norte da Ordem dos Médicos, apresentou ainda outra hipótese: “O óbvio é que exista uma relação com o medicamento, mas às vezes não é o verdadeiro. Uma infeção bacteriana podia explicar esta situação”.

Apesar das dúvidas, e de muito cientistas evitarem comentários aprofundados por disporem de tão poucos elementos, há um ponto que não se cansam de reforçar: sem ensaios clínicos, não há novos medicamentos. “Os ensaios clínicos são essenciais se queremos curar doenças como o cancro ou o Alzheimer”, reforçou Max Parmar, diretor da unidade de ensaios clínicos MRC, da University College London. Mas o professor não deixa de referir os riscos: “Nos ensaios clínicos são, normalmente, feitos todos os esforços para minimizar o risco para os participantes, contudo alguns riscos são inevitáveis. Neste momento ainda é muito cedo para dizer se os efeitos secundários apresentados pelos indivíduos eram riscos evitáveis ou inevitáveis“.

Atualizado às 23h45