Sobretaxa de IRS, cortes nos salários, contribuição extraordinária de solidariedade, 35 horas semanais na Função Pública. Muitas das que seriam as principais questões a esclarecer no próximo orçamento já foram clarificadas nos acordos entre o PS e os partidos mais à esquerda, mas nem tudo está definido. Para já, a grande incógnita parece ser esta: depois de tantas reversões, onde se vai cortar?

O Governo de António Costa começou a ritmo apressado devido à altura do ano em que tomou posse (no final de novembro), com a pressão de ter de fechar o seu primeiro Orçamento do Estado – já atrasado – o quanto antes, mas com o caderno de encargos praticamente definido.

A sobretaxa de IRS seria eliminada a dois tempos, os cortes nos salários idem-idem até ao final do terceiro trimestre, o salário mínimo subiria, a taxa de IRC já não desceria. No entanto, tudo isto tem de ser feito com o défice a ser reduzido de 3% do PIB (sem contar com o Banif) em 2015 para os 2,8% do PIB este ano.

Se tudo isto poderia ser feito à conta do aumento do PIB que serve de base a estas contas com o crescimento maior que este Governo espera, a verdade é que as contas do Governo não estarão a ser bem aceites por Bruxelas. Segundo uma notícia avançada pelo Diário Económico na semana passada, a Comissão Europeia estará a pressionar o Governo para que no ‘draft’ do orçamento que enviará esta semana a Bruxelas apresente uma redução no défice superior à que prevê.

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Esta terça-feira, António Costa confirmou a pressão adicional da Comissão Europeia: “As instituições europeias, naturalmente, pretendem que em 2016 haja uma redução efetiva do défice estrutural que tenha em conta o que não foi alcançado em 2015. Portanto, estamos a conversar nesse sentido”, disse em Cabo Verde. Mas também recebeu avisos vindos da esquerda – ao caso, de Jerónimo de Sousa: “Ninguém entenderá que o Governo ceda em questões fundamentais. Se existir uma destruição desses conteúdos de posição conjunta [assinado por PCP e PS] naturalmente teremos um problema”.

O que está em causa?

Depois de um ano ‘às turras’ com o anterior Governo PSD/CDS-PP sobre as previsões económicas e orçamentais – Bruxelas acusou o Governo de ser otimista, o Governo disse que as previsões da Comissão no final nunca batiam certo -, o balanço de final do ano parece estar mais perto do que Bruxelas previa.

O défice orçamental, a julgar pelo que espera o Governo (com muitas dúvidas da UTAO, mas os resultados só serão conhecidos no final de março), terá ficado pelos 3% do PIB. No entanto, nestas contas faltam dois pontos importantes para Bruxelas: o saldo estrutural e o impacto do Banif.

A ajuda ao Banif deverá fazer aumentar o défice para, pelo menos, 4,2% do PIB, contas assumidas pelo Executivo, o que pressiona a tesouraria do Estado e os encargos com a dívida pública, assim como o próprio nível de dívida pública.

O saldo estrutural é outro problema ainda maior. Se a Comissão pode fechar os olhos ao Banif para efeito do Procedimento dos Défices Excessivos (PDE), dando mais um ano para reduzir o défice sem sanções (mas também sem sair do PDE, do qual é alvo há sete anos consecutivos), a verdade é que este é um dos indicadores que Bruxelas tem privilegiado quando toma decisões sobre cada estado-membro da zona euro.

E porque é que este é um problema? Porque se a redução do défice estrutural inscrita nos tratados teria de ser no mínimo de 0,5% do PIB a cada ano, os resultados previstos para 2015 apontam para o contrário. O anterior Governo esperava em abril que este indicador (que é suposto medir o verdadeiro ajustamento orçamental, sem contar com o crescimento da economia) caísse para o valor previsto, mas a Comissão Europeia disse, já em novembro, que o saldo iria agravar-se em 0,4% do PIB. Pior, que com as medidas previstas, acabaria por agravar-se mais 0,5% do PIB em 2016, precisamente o inverso do objetivo que está inscrito no Tratado Orçamental da zona euro. O FMI veio corroborar: em agosto estimou um agravamento deste indicador em 2015, mas ainda superior, de 0,6% do PIB, e disse esperar que esse ajustamento estrutural estivesse em causa até 2020, levando a uma violação das regras orçamentais europeias todos estes anos.

Estando em situação de défice excessivo, embora com um acordo sobre a trajetória – que não será cumprido em 2015 – que permite não ser alvo de sanções, Portugal tem a obrigação à luz das regras europeias de reduzir não só o défice nominal, como o défice estrutural até atingir o objetivo de médio prazo de 0,5% do PIB, e de reduzir a dívida pública.

A Comissão Europeia e o FMI (este apenas com poder de sugestão) têm avisado desde o final do programa, em junho de 2014, que o caminho de consolidação nas contas públicas está longe de terminar e que as autoridades portuguesas estariam a perder o ímpeto reformista e a abrandar a consolidação, no ano passado até mesmo a reverter esse ajustamento.

E reduzir a dívida?

Outra das questões que está para esclarecer e que será alvo de discussão com a Comissão Europeia e com o FMI na próxima missão que começa no dia 27, será o nível de dívida pública. Uma questão que será continuada no caso da Comissão, já que Bruxelas tem poder de veto e de sugestão de alterações no Orçamento do Estado português.

A mensagem que as duas instituições têm passado nos últimos anos é que a dívida pública portuguesa é sustentável (embora nem sempre com toda a confiança) e que o importante é que a trajetória de crescimento seja invertida. No início do programa esperava-se que o primeiro ano em que o rácio de dívida pública/PIB cairia seria em 2014. Até chegou a ser 2013, a seguir à oitava e nona revisões (que aconteceram em simultâneo), apesar de os valores serem sempre revistos em alta. No final, essa descida foi sendo adiada sempre por um ano, até 2015, o ano em que finalmente cairia.

A defesa do anterior Governo era que tinha os “cofres cheios” e que iria utilizar essa tesouraria extraordinária para pagar antecipadamente ao FMI uma parte do resgate. Tal chegou a acontecer, mas como não conseguiu vender o Novo Banco a tempo, a estratégia foi abortada a meio caminho. No final do ano passado, a resolução do Banif veio pressionar ainda mais essa capacidade por parte do Governo, agora já com António Costa ao leme, juntamente com uma derrapagem no défice na segunda metade do ano, cujos resultados ainda estarão por conhecer.

O ponto assente é que a dívida pública em 2014 atingiu os 130,2% do PIB. Será que finalmente desceu em 2015? As contas só serão conhecidas com mais precisão também em março, quando o INE enviar a Bruxelas a primeira notificação ao abrigo do PDE, mas as estimativas são cada vez menos otimistas. O Governo anterior esperava em abril que a dívida caísse para 124,2% do PIB. No final de setembro esse valor foi corrigido para 125,2%.

O Governo de António Costa entrou no Governo com uma meta – igual à da Comissão Europeia – de 128,2% do PIB. Com as contas do Banif no final do ano, e a esperar um crescimento inferior em uma décima ao que esperava o anterior Governo, as contas socialistas foram ajustadas à espera que a dívida pública fosse agravada e que tenha terminado o ano nos 129,9% do PIB, apenas três décimas abaixo do valor do ano passado. Este valor ainda pode ser alvo de ajustamentos até ao que será apresentado no Orçamento do Estado, que António Costa e Mário Centeno darão a conhecer até ao final do mês.

O orçamento: muito conhecido, mas por concretizar

O PS avançou com um programa detalhado ainda antes de chegar ao poder e os acordos com o Bloco de Esquerda e com o PCP dão ainda mais detalhe sobre muitas das principais medidas que foram acordadas. Algumas destas medidas avançaram ainda antes do final do ano para que não comprometessem as contas públicas deste ano, com a incerteza em torno da continuação da sua aplicação devido à legislação especial que envolve o orçamento.

No entanto, algumas destas medidas ainda estão por concretizar no próximo orçamento. Algumas aumentam a despesa face ao quadro apresentado pelo anterior Governo, outras devem gerar poupanças.

A aumentar a despesa, ainda por concretizar, está, por exemplo, a redução do IVA sobre a restauração, concretizado pelo Governo de Pedro Passos Coelho. A subida de categoria da taxa intermédia (13%) para a taxa normal (23%) foi sempre contestada pelos partidos à esquerda, todos eles, e a promessa é agora de fazer regressar a restauração à taxa intermédia de 13%, o que resultará na quebra direta de receitas fiscais para o Estado.

Uma medida em sentido contrário (no que aos cofres do Estado diz respeito) ainda por concretizar é a não descida da taxa de IRC que estava prevista pelo anterior Governo, e que tem vindo a ser concretizada anualmente. O PS já garantiu que a taxa não desce, o que evita perda, mais uma vez direta, de receita para os cofres do Estado. Os impactos na economia da manutenção da taxa de IRC, como de repor o IVA na restauração para 13%, só serão possíveis de conhecer no final do ano.

Mas as lista de medidas acordadas à esquerda é mais vasta. O PCP tem uma, o Bloco de Esquerda tem outra. A questão mais importante nesta altura parece mesmo ser o calendário. O acordo inicial com o Bloco de Esquerda sobre o fim da sobretaxa de IRS e sobre a reversão dos cortes salariais não foi aceite da mesma forma pelo PCP, e o compromisso acabou por ser diferente, com a reversão a ser feita mais cedo e em diferentes moldes.

Os partidos continuam a negociar a proposta de orçamento – cujo draft é enviado até ao final desta semana para Bruxelas – até à sua apresentação no final deste mês ou início de fevereiro. Até lá, as pressões de um lado (Bruxelas) e outro (PCP e Bloco de Esquerda) ainda poderão fazer mudar muito do que aí vem para agradar a gregos e troi(k)anos. O ponto de partida? É o que se segue – com a conta anexa (sempre que ela foi disponibilizada pelo PS).

O prometido, mas ainda não cumprido

  • Baixar o IVA aplicado à restauração de 23% para 13%. O custo estimado pelo PS em Agosto para esta medida era de 350 milhões de euros por ano.
  • Repor os complementos de reforma dos trabalhadores das empresas do setor empresarial do Estado. A medida já está em discussão no Parlamento, avançando autonomamente ao Orçamento do Estado.
  • Impor a condição de recursos nas prestações sociais não contributivas. A poupança estimada em quatro anos era superior a mil milhões de euros, mas a medida nunca foi bem explicada, mesmo durante a campanha quando virou um dos temas quentes. A formulação foi ainda mais mitigada nos acordos de esquerda. Resta saber se será aplicada, como, em que dimensão – e quando.
  • Redução da TSU paga pelos trabalhadores com salário base bruto igual ou inferior a 600 euros. A medida não é uniforme, pode ir até 4 pontos percentuais dependendo do nível de rendimento, e a redução nas contribuições não pode afetar a reforma. Ou seja, a cada ano, o Estado tem de fazer uma transferência extra para a Segurança Social para compensar o que a previdência perde com esta medida.
  • Revisão da base de cálculo das contribuições pagas pelos trabalhadores a recibos verdes.
  • Aumento da progressividade do IRS utilizando por exemplo o aumento do número de escalões. Medida não deve afetar todos de igual forma, podendo mesmo aumentar o imposto pago por quem mais recebe, mas ainda faltam os detalhes. Pode não ser implementada este ano.
  • Taxa de IRC não desce. Na reforma do IRC estava previsto que a redução fosse continuada anualmente, apesar de alguns ajustes terem sido feitos no ritmo pelo caminho, ao ritmo de dois pontos percentuais ao ano. O objetivo era que se fixasse entre 19% e 17%. No ano passado a taxa caiu pelo segundo ano consecutivo, agora para os 21%. Este ano, o PS decidiu acabar com as descidas. A estimativa de receita que o Estado não perde por cada ano é de 400 milhões (pelos 4 pontos percentuais que faltaria descer), dizem as contas do PS apresentadas em agosto.
  • Revisão dos valores das coimas e juros por incumprimentos no pagamento de impostos (pessoas singulares), como é o caso dos atrasos. Os valores das coimas subiram consideravelmente, nalguns casos para 5 vezes o imposto em falta, valor que pode subir caso essa coisa não seja paga de imediato. A medida foi acordada com o Bloco de Esquerda mas ainda não avançou.
  • Benefícios fiscais em IRC para estimular a criação de emprego e aumento da produção em território português e mais estímulos fiscais às PME.
  • Imposto sobre as heranças milionárias. A medida está prevista nos acordos à esquerda e nos vários programas do PS, mas ainda não avança este ano (segundo o Diário Económico). A poupança prevista era de 70 milhões de euros por ano. Falta saber quando.
  • Fim do regime de requalificação e mobilidade especial, que o anterior Governo tentou usar para cortar custos e, a determinada altura, para promover a saída de trabalhadores da Função Pública.
  • Diversificar fontes de financiamento para a Segurança Social? Sim. Como? Logo se vê. Não há propostas, a medida terá de ser discutida com a concertação social. Para já, é trabalho de longo prazo e sem fim à vista.
  • Contratos da TAP e concessões para reverter ou negociar, mas com futuro ainda muito incerto. O Governo insiste na reversão de algumas concessões e quer voltar a ter a maioria do capital da TAP, mas o assunto será muito certamente tema de intensa e prolongada discussão entre os advogados de cada lado.