Era uma vez um menino, nascido na grande ilha, lá bem down under, que sonhou ser alguém grande com a raquete na mão. Era loiro, olho azul, boné sempre com a pala para trás, esquerda a duas mãos. O menino só via desporto à frente e maravilhava-se com o footy, o futebol australiano que se joga num campo oval, com 36 jogadores e seis pares de postes. Adorava o jogo mais popular do país, mas era melhor a jogar um dos desportos mais solitários do planeta. Por isso é que o menino foi convidado a participar no Open da Austrália numa altura em que muitos apanha-bolas lhe ganhavam na idade. Lleyton Hewitt tinha 15 anos.

Aí já tinha na cabeça um sonho, ou vários. Não queria apenas ser bom, pretendia tornar-se um dos melhores no ténis. “Quando ainda era um miúdo, em Adelaide, queria tornar-me no número um do mundo, vencer um Grand Slam e ganhar a Taça Davis para a Austrália”, contou, um dia, já graúdo e nostálgico com as recordações que tinha da infância. Os sonhos são como fazer um jogo de ténis em que se acertam todos os primeiros serviços — são muito difíceis de concretizar, daí o nome. Mas para Lleyton Hewitt não foi assim tão complicado. Aos 20 anos e oito meses já tinha tudo o que queria.

O australiano, já aí, era diferente. Era um tenista fiel ao fundo do court, um pouco alérgico às subidas à rede, especialista em resposta às boas bolas que o adversário lhe atirava com pancadas ainda melhores. Lleyton não era dono de qualquer pancada que o fizesse uma ameaça a atacar. O serviço era competente, a direita forte como a de tantos outros e a esquerda a duas mãos era certeira o suficiente para lhe dar tempo para se movimentar em campo. O melhor do australiano aparecia quando se defendia de ataques dos outros. “Um dos melhores de sempre a escolher que pancada tinha que bater”, descreveu-o assim Andre Agassi, o careca norte-americano vencedor de oito torneios do Grand Slam, na sua autobiografia. Tinha razão.

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As respostas ao serviço, os contra-ataques quando o adversário menos esperava e as correrias no fundo do court, aliados a uma atitude quase raivosa, de dar tudo, fizeram de Hewitt o número um do ranking em abril de 2001. Conseguiu-o depois de vencer o seu primeiro Grand Slam, o Open dos EUA, e de ganhar o Tennis Masters Cup (o atual World Tour Finals, que junta, no final de cada temporada, os tenistas do top-10). Antes, tinha já conquistado a Taça Davis com a Austrália, em 1999, quando tinha 19 anos. “É a minha personalidade, foi algo com o qual eu nasci. Acho que sou um verdadeiro competidor. Independentemente daquilo pelo qual estiver a passar, quero sempre dar o melhor que há em mim. Sempre trabalhei muito no court, dava prioridade a isso em vez de ir ao ginásio”, explicou, ao site da ATP.

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Uma vez, em 2008, chegou a jogar durante cinco horas e quatro minutos para derrotar Marcos Baghdatis, na terceira ronda do Open da Austrália. “C’mooooon!“, terá gritado, como sempre berrava cada vez que conquistava um ponto importante durante os jogos. Era uma imagem de marca. Nesse encontro matou-se com o esforço que fez para continuar vivo no torneio ao qual nunca faltou, que nunca conseguiu conquistar. Nem em 2005, quando o russo Marat Safin o anulou na final, nem esta quinta-feira. À 20.ª vez consecutiva que apareceu no Grand Slam do seu país, Lleyton Hewitt terminou a carreira na segunda ronda do torneio, por obra e vontade de David Ferrer.

O espanhol derrotou-o em três sets (6-2, 6-4, 6-4) e até ele se entristeceu com a vitória que acabara de conseguir. “Nunca tive grande ídolos na carreira, mas o Lleyton é um deles. Há sete anos pedi-lhe para autografar uma t-shirt e ela está num pequeno museu que tenho em casa. É a única t-shirt de um tenista que está lá”, revelou o número oito do ranking. O público que enchia as bancadas do court central multiplicava as mãos em palmas, mais ainda quando o microfone passou para as mãos de Hewitt, que forçava os olhos a aguentarem as lágrimas. “Alguns rugidos do público foram dos mais altos que já ouviu. Arrepiei-me várias vezes. Não deixei nada no balneário e isso é algo do qual poderei sempre orgulhar-me. Dei 100% em toda a minha carreira. É a minha atitude. Se em vez de ser tenista tivesse antes tido um trabalho das 9h às 17h no escritório, quereria sempre dar o melhor de mim”, garantiu.

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Lleyton sempre quis acenar com a raquete de despedida ali, em Melbourne. “Sou um felizardo por poder acabar nos meus próprios termos. Muitos grandes desportistas não tiveram essa oportunidade”, disse. O adeus de Hewitt surge no mesmo torneio em que, na noite da final que disputou em 2005, pediu a mulher, Bec Cartwright, em casamento. A mesma com quem teve os três filhos que entraram no court enquanto o australiano, de 34 anos, discursava para o público. “Foi muito especial ter os meus filhos comigo nos últimos 10 anos. Eles vão lembrar-se disto. O Cruz [filho que também joga ténis] chegou a bater bolas com o Federer e o Murray. Isto provavelmente ajudou-me a prolongar a minha carreira”, admitiu, emocionado, com os filhos ao lado.

Até aqui, em que chegou “aos limites do corpo” após puxar tanto por ele com a perseverança e atitude que se veem em poucos tenistas. “É um dos maiores competidores que já vi na minha vida”, revelou Novak Djokovic, o sérvio, atual líder do ranking, que é um dos jogadores que se pode gabar de não ficar muito atrás do australiano neste aspeto. Em 20 anos de carreira, Lleyton Hewitt venceu 32 encontros que foram até ao quinto set — o quarto melhor registo, escreve o The Guardian, apenas atrás de Ivan Lendl (36), Ilie Nastase (35) e Pete Sampras (33). Dá-lo como morto num jogo era a morte do artista e essa talvez fosse a maior qualidade do australiano que ainda hoje é o mais novo de sempre a tornar-se o número um do mundo. E foi-o, ao todo, durante 80 semanas.

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Nick Kyrgios, o novo bad boy australiano que, aos 20 anos, tem tento na língua a menos para tanta qualidade na raquete, disse que Lleyton Hewitt ainda é “o melhor tenista” do país. E, nos segundos que teve para falar no vídeo que a organização do Open da Austrália fez para se despedir de Hewitt, pediu-lhe para continuar a jogar. Não vai acontecer, nem que Kyrgios insista com um “c’mon!” que remexa nas memórias do australiano. “Agora posso encostar-me, relaxar e não ter de por o alarme, acordar e ir para o ginásio. A Bec e os miúdos estão ansiosos para que isto aconteça”, desabafou. Que tenha um bom descanso então.