Título: O Conceito do Político
Autor: Carl Schmitt (tradução, introdução e notas de Alexandre Franco de Sá)
Editora: Edições 70
Páginas: 200
Preço: 16,90€

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Toda a gente conhece as laudas de Carl Schmitt à suástica. A cruz gamada que exibiu com orgulho é a que agora mais lhe pesa nas costas contra a sua ascensão à glória filosófica. Caso se tratasse de um democrata impoluto, teria com certeza o caminho mais aplanado. No entanto, a julgar pelo seu O Conceito do Político, era nessa conta que ele próprio se tinha.

Não se trata, este julgamento, de uma tentativa esfiapada de polir o pensador. Fazer de Schmitt um exemplar cidadão das democracias modernas implicaria uma habilidade contorcionista a que nem os melhores acrobatas ambicionariam. Dizer que Schmitt é um democrata não procura emendar a História, mas apenas remeter para a leitura que Schmitt faz de democracia.

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Numa forma mais sintética e charmosamente mais culta, bastar-nos-ia encaminhar o leitor para os escritos de Schmitt sobre o parlamentarismo, nos quais o alemão explica como parlamentarismo e democracia são ideias contrárias. Mas como uma verbosidade congénita domina sobre nós e o brilhantismo culto e despreocupado não é ainda mais do que uma aspiração, explicaremos tão inaudita tese a partir do conceito de político.

Ora, o político padece, segundo o autor, do diagnóstico infeliz que tantas vezes vitima as doenças obscuras. Como dantes se explicava que os homens morriam de apoplexia e se explicava a apoplexia como um ataque que mata, também o político é muitas vezes definido como aquilo que diz respeito ao Estado e o Estado como aquilo que trata da política.

Segundo o autor, do nada que isto explica, mesmo o nada que sugere está errado.

Isto porque daqui se poderia julgar que, mesmo que tal forma não precisasse em que consiste, de facto, o político, pelo menos separasse as águas: os funcionários públicos dedicam-se aos seus labores, os economistas aos seus números, os pescadores às suas fainas, e os estadistas à sua actividade própria, política, apartada das outras, significasse ela a perpetração discreta de golpes curiais ou a grandiloquência da disputa internacional.

Ora, Schmitt diz-nos que a política talvez pudesse ser interpretada assim nas sociedades do século XVIII, por exemplo, em que circunstâncias excepcionais conseguiram pacificar as sociedades, mas que não seria esta a situação no século XX.

Schmitt explica que o Estado – nos seus dias como nos nossos – não é uma grandeza clara. Aquilo de que se ocupa é variável – ora se chamam os mais afamados economistas para encherem de lingotes de ouro as almofadas em que se deitam as cabeças cidadãs, ora os mais louvaminheiros diplomatas para impedir querelas com os vizinhos – e é essa variação que define o político.

Políticos a tosquiar ovelhas?

Para Schmitt, tudo o que pode interferir no Estado é político, e é neste sentido, no sentido em que qualquer corporação pode erguer a sua voz por cima de todos os púlpitos parlamentares, que se pode falar de democracia. É quando todas as actividades se podem tornar politicamente importantes que existe um governo democrático. O Estado total e o Estado democrático são, para Schmitt, a mesma coisa: o ponto em que Estado e sociedade se confundem.

O jurista alemão não quer, com isto, convencer-nos de que a função primordial do Estado pode passar por ter os mais altos políticos da Nação a tosquiar ovelhas caso a agro-pecuária se torne uma força política capital; o que Schmitt quer dizer é que o Estado é capaz de distinguir os amigos e os inimigos de um povo a partir dos interesses desta corporação, e que quando uma corporação leva o Estado a acolher como amigos os que o são também dela e a repelir como inimigos os que a prejudicam, se torna uma verdadeira força política.

E este é, aliás, um dos pontos mais importantes e mais explorados do livro de Schmitt: a delimitação de amigos e inimigos como a categoria fundamental da política. Tal como na ética é entre bem e mal e na estética entre belo e feio, é na variação entre amigo e inimigo que balança o termómetro da política. Não basta que uma coisa seja má para ser inimiga política, nem é apolítica se entrar nas categorias de amigo e inimigo. Da mesma maneira que não basta que seja eticamente censurável que uma empregada faça umas sestas rápidas na cama da patroa ausente para se tornar uma inimiga da nação, não se trata de um problema exclusivamente religioso quando luteranos e anabaptistas guerreiam até à morte. Entre o domínio ético – certo e errado – e o domínio político – aquele que está errado passa a ser meu inimigo – há um salto que a categoria ética não exige. Podemos estimar muito aqueles que estão no erro e ter como inimigos aqueles que, embora sem fazerem nada de errado, têm interesses que conflituam com os nossos.

Ora, é na gestão de inimizades e amizades que a política se situa. Quer nos casos mais óbvios – os da política externa – quer na mais miúda política interna. Uma decisão política é sempre uma decisão de conflito, em que há uma corporação que vê ameaçados os seus interesses ou, pior ainda, a sua existência.

A visão de Schmitt pode parecer, em certo sentido, quase bélica. Isto porque, se uma decisão vai contra uma classe, em última análise, vai contra a sua existência, pelo menos nos moldes em que estava constituída. Ora, o problema torna-se verdadeiramente político quando o que está em causa é a ameaça de destruição da existência, porque é aí que entra a possibilidade de matar. Esta possibilidade – a que chamamos guerra – é o que dá realmente força política a alguma coisa. A partir do momento em que uma força é capaz de mobilizar para a guerra, está constituída como uma força política de primeira instância.

Isto não é, obviamente, fácil. Há poucas coisas capazes de mobilizar os homens para a guerra, de os fazer abdicar da vida em prol de outra coisa. São essas, então, as capazes de determinar o estado de emergência, ou de excepção, que constituem o caso paradigmático, aquele de que, acima de todos, se ocupa o Estado. Quando o petróleo é capaz de motivar uma guerra, o petróleo é uma força política; quando, por outro lado, as invectivas para uma guerra em nome da honra do presidente não acolhem senão o pálido entusiasmo de uns mercenários necessitados de soldo, o presidente não é, pelo menos, a força política paradigmática, aquela que determina o Estado.

Política, economia e ética

Agora, tão interessante quanto as suas ideias sobre aquilo que constitui a substância política, são as suas denúncias da forma moderna de tentar encapotar esta relação. O alvo principal da sua crítica é, como sempre nas suas obras, o liberalismo.

O liberalismo está interessado em eliminar das bocas políticas a ideia de amigo e inimigo porque está interessado em fazer ver que não há nada superior aos interesses egoístas de cada um. Matiza, assim, a linguagem através da ideia de concorrência em vez de inimizade, e vai discretamente procurando eliminar – com o mais flagrante uso das categorias políticas – o seu verdadeiro inimigo: o Estado.

É neste ponto que as esquerdas contemporâneas regozijam com a denúncia de Schmitt, embora sejam logo de seguida atacadas nas suas pretensões – marxistas ou pacifistas – de fazer da política uma questão económica ou ética. Nem os pacíficos “guerra contra a guerra” saem da categoria bélica que forma a política, nem a economia é sempre a força paradigmática na relação amigo-inimigo.

Todas as tentativas de neutralizar esta relação – quer seja porque, numa perspectiva individualista, se considera absurdo o sacrifício da vida, quer porque, numa perspectiva mais contemporânea, se procura entregar a política a um domínio da técnica, neutral – falham. Falham porque a luta contra o Estado está imersa nesta relação e porque a técnica não é, de maneira nenhuma, neutral mas sim instrumental: pode ser usada por qualquer lado político.

O interessante, da segunda parte do livro de Schmitt, é a denúncia da guerra pela linguagem. Os governos apresentam-se como fazendo guerras “em nome da humanidade”, apodam a guerra de injusta quando também a política lhe podia chamar honrosa e, sobretudo, pretendem dar sempre às suas acções um falso cunho universalizante, afastado da política.

O livro é demasiado rico para, numa modesta resenha, abarcar tudo o que nele importa. Qualquer interessado em política deve compulsar O Conceito do Político, lê-lo, relê-lo, observar a maneira elegante como parte o ovo de Colombo na eterna questão antropológica de saber, se não o sexo dos anjos, pelo menos se o produto do sexo é anjo ou demónio, e admirar o rigor de Schmitt.

A tradução, repassado no filtro dos recta-pronúncias, deixaria apenas um ou outro grumo. Gralhas, aliterações pouco preocupadas com o engorolar da língua e algumas frases longas a denunciar a estrutura alemã. Mas, como explicaria Schmitt, não é isso o status paradigmático. A verdadeira força do livro é a clareza com que se demonstra que está em curso uma guerra disfarçada. E Carl Schmitt, o jurista maldito, desmascarou-a.