Bastava uma palavra para o justificar: desgaste. Pep estava farto. Olhava-se para o catalão e quatro anos pareciam ter o peso de dez. Estava mais careca, pálpebras quase sempre a pesar sobre os olhos, com pelos bem mais brancos na barba e no pouco cabelo que lhe restava. Tamanha foi a presença que fez crescer no Barcelona que, no final, já não era apenas um treinador. Servia de porta-voz, meticuloso na vigilância das refeições e dos hábitos dos jogadores, organizava tudo quanto era viagens e deslocações da equipa, respondia a tudo quanto era assunto no clube. Deu tudo até sentir que esse todo deixou de chegar para mexer com quem ele queria: “Quando vir que os olhos dos meus jogadores já não brilham, será a hora de me ir embora”.

Guardiola foi-se do Barça no início do verão de 2012. Ansiava por descanso e fez questão de o procurar longe. Reuniu a mulher e os filhos e fez as malas para as desfazer em Nova Iorque, cidade que o seduzia. “Tinha-me desgastado por completo. Essa época jogámos como uma maravilha, ganhámos quatro títulos, mas eu estava no limite do desgaste e não via que novas voltas táticas podia dar à equipa”, admitiria, mais tarde. Nem cinco meses tinha contados nos EUA e já era namoriscado por vários pretendentes. Parecia uma musa que nada apenas tinha de esperar para escolher o melhor parceiro. Txiki Begiristain, amigo dos tempos de jogatanas no Barça e, na altura, já diretor para o futebol no Manchester City, era dos que mais insistia em flirtar com Pep.

Bayern Munich's Spanish headcoach Pep Guardiola arrives for the training session on the eve of the UEFA Champions League Group F football match between Bayern Munich and Olympiakos Piraeus in Munich, southern Germany, on November 23, 2015. AFP PHOTO / CHRISTOF STACHE / AFP / CHRISTOF STACHE (Photo credit should read CHRISTOF STACHE/AFP/Getty Images)

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Não era apenas pegar no telefone, marcar o número de Pep e dizer-lhe que o clube oferecia “x” milhões para o arrancar de Nova Iorque. “Não eram ofertas económicas, mas quase cartas de amor”, chegou a escrever Martí Perarnau, o jornalista que, com a anuência de Pep, foi a segunda sombra do catalão durante a primeira época na Alemanha para descrever a experiência em livro (“Herr Pep“). O treinador diz que sim ao Bayern meses antes de Munique passar a ser o centro dos canecos na Europa. Jupp Heynckes deixa-lhe um legado de quatro títulos conquistados e obriga Guardiola a ter de pegar numa equipa acabada de ganhar tudo. A ter de entrar na cabeça de jogadores que se julgavam isentos a melhorias e convencê-los de que havia outras formas de serem os melhores.

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Pep consegue-o, mesmo que a Liga dos Campeões lhe tenha escapado — vamos ver como corre ainda esta época. Aos 16 títulos que conquista no Barça junta os cinco que já coleccionou com o Bayern. A hegemonia que os bávaros já tinham na Bundesliga tornou-se obscena com Pep: em 2014, é campeão a sete jornadas do fim e a quase dois meses do final do campeonato. No dia da apresentação, após falar para uma sala a abarrotar com jornalistas, um catalão cita um poema de Constantinos Kavafis para, já no relvado, lhe desejar que “o caminho seja longo” no novo clube. “Que seja bom!”, ripostou logo Pep, nesse 24 de junho de 2013. Pep não gosta de coisas longas, prefere corridas em que avista a meta a maratonas em que tem de imaginar onde ela está.

“Poderá aguentar este rimo durante mais de três anos? Custa-me a acreditar. Este homem desgasta-se muito porque vive tudo a mil à hora. Parece-me que será como foi no Barça: fica três ou quatro anos e depois está esgotado. Terá que voltar a descansar e, depois, vai para Inglaterra para fazer outro ciclo igual. Não pode viver sempre a este ritmo…” — Miquel Soler, amigo de Guardiola, em “Herr Pep”.

Sabia que a relação com o Bayern teria um termo curto e que o círculo não demoraria a fechar-se. Inglaterra cativava-o: ritmo frenético dos jogos, estádios à pinha, adeptos barulhentos, equipas que não se encolhem, a cultura da pint (copo de meio litro de cerveja) no final dos encontros. “Gosto deste ambiente, um dia vou treinar aqui”, confidencia a Manuel Estíarte, seu adjunto de sempre, após verem um 4-1 com que o Manchester United vence o Schalke 04, em Old Trafford, em 2011.

Guardiola tempera a vontade e mantém-na a marinar até 5 de janeiro deste ano, quando a decide meter no forno. “Preciso de um novo desafio e quero usar essa oportunidade para ser treinador em Inglaterra. Queria experimentar esse ambiente e estou ansioso de chegar a esses estádio. Tenho 44 anos, é a altura certa”, anuncia ao mundo. Os jornais ingleses vibram e lançam dúvidas, rumores e perguntas até ao primeiro dia de fevereiro. Até o City decidir “remover o fardo desnecessário da especulação” e anunciar que Pep ia mesmo para o lado azul de Manchester.

A notícia de um treinador — que até mandou abaixo o site do clube — roubou as atenções no dia que lembra ao mundo como os humanos com jeito para jogar à bola valem milhões. A ida de Pep Guardiola no City foi a confirmação de coisas várias: da aposta mais séria de sempre do clube para ter um treinador que lhe dê a Liga dos Campeões; de um reencontro de Pep com Jürgen Klopp, extrovertido alemão que chegou uns meses antes ao Liverpool e já o tinha avisado para “ter cuidado com o vento” nos estádios ingleses; e de o facto de Guardiola ir treinar um clube que, embora com muito dinheiro na conta bancária, tem poucos títulos no museu (apenas quatro campeonatos, por exemplo).

E significa também a ida do treinador para a equipa que lhe causou uma das maiores irritações enquanto esteve no Bayern. Na primeira época, os alemães sentiram o conforto do passeio na Liga dos Campeões e, à última jornada da fase de grupos, o Bayern recebeu o City já qualificado. A partida começou por falar alemão e, em 12 minutos, a equipa de Pep já vencia por 2-0. Parecia o prenúncio de um atropelamento em forma de goleada, mas não. Ao invés aconteceu o que Guardiola mais odeia. “Os erros chegam quando te relaxas, quando acreditas que já está tudo feito”, resumiu, após esse jogo em que os seus jogadores amolecerem e acabaram por perder 3-2, em casa.

Mais um golo sofrido e o City teria roubado a liderança do grupo ao Bayern e isso chegou a assustar o treinador. “Thomas, congelem o jogo. Congela-o. Tem que acabar assim”, disse, irritado, a Müller, quando chamou o avançado ao banco após a equipa sofrer o terceiro.

A equipa do chileno de olhar melancólico quase lhe pregou uma partida. Manuel Pellegrini puxa Pep de volta à Terra e mostra-lhe como os bávaros ainda tinham o sucesso recente na barriga. “Conheço muito bem o Pellegrini, é um grande treinador”, avaliou, na altura, o catalão, antes de o treinador do City se alongar sobre quem não sabia que viria a substituí-lo no clube de Manchester: “Como sabemos, recuperar fácil e rápido é um dos rasgos importantes das equipas do Guardiola. É um estilo de muita posse e de bom jogo”. Meses antes, porém, o Bayern vencera o City por 3-1 e chegara a estar com a bola durante 3 minutos e 27 segundos e 94 passes, antes de marcar um golo. Foi obra. E só a erguer uma obra é que Manuel Pellegrini poderá conseguir dificultar a vida a Pep.

Porque o chileno está na final da Taça da Liga, tem o City no topo da Premier League (a três pontos da liderança) e vai jogar os oitavos-de-final da Champions contra o Dínamo Kiev. Isto tudo para dizer que o treinador ainda pode acabar a época com três troféus conquistados e deixar a Guardiola um legado parecido ao que Jupp Heynckes lhe entregou no Bayern de Munique — uma equipa que tudo ganhou na temporada anterior. Ou seja, pode dificultar-lhe a tarefa de entrar na cabeça dos jogadores. Seja fácil, difícil ou assim-assim, Pep Guardiola deverá ficar agarrado ao Manchester City até se fartar ou sentir que o que diz já não entra na cabeça de quem o deve ouvir.

O namoro dos ingleses deu certo e, à terceira, conseguiram que o catalão dissesse que sim a um convite do City. Porque o primeiro não apareceu em Nova Iorque — surgiu em 2005, quando Pep versão jogador, com 34 anos, estava prestes a trocar as chuteiras pela gravata e o clube lhe propôs treinar uma semana à experiência com a equipa. Agora é Guardiola que vai experimentar a Premier League.

Bayern Munich's Spanish coach Josep Guardiola (C) speaks with Bayern Munich's German forward Thomas Mueller (R) after his team won against Olympiakos during the Group F Champions League football match at the Karaiskaki stadium in Athens on September 16, 2015. AFP PHOTO / ARIS MESSINIS (Photo credit should read ARIS MESSINIS/AFP/Getty Images)

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