Desorganizada. É esse o adjetivo mais frequentemente usado por Gonçalo Matias, ex-diretor do Observatório das Migrações e atualmente vice-diretor da Católica Global School of Law, para classificar a maneira como a Europa tem lidado com a atual crise de refugiados, a maior desde a Segunda Guerra Mundial. Até à data, segundo números do ACNUR, chegaram 62 397 refugiados à Europa por mar no primeiro mês do ano — um número dez vezes superior ao período homólogo em 2015. Do número total, 58 547 entraram no espaço Schengen pela Grécia.

Para o especialista, é precisamente por aquele país banhado pelo Mar Egeu que a União Europeia tem de dar cobro à crise de refugiados. Algo que acredita não tem acontecido: “A resposta europeia tem sido lenta e sempre no sentido de deixar os países da linha da frente muito isolados. Isso não dá bons resultados, a História tem provado isso”.

Este isolamento teve um novo pico recentemente, com a Áustria a defender a suspensão temporária da Grécia do espaço Schengen — algo que a Alemanha criticou. Uma prova da atual divisão de posições na Europa perante esta questão: “Isto tem a ver com uma enorme incapacidade que a Europa tem revelado em dar uma reposta conjunta a este problema”.

Para o especialista, a solução adequada para a Europa lidar com a crise de refugiados passa por deslocar “amplos recursos” e técnicos treinados para as regiões de entrada de refugiados, com particular atenção na Grécia. O objetivo seria um: fazer uma efetiva triagem de quem chega ao espaço Schengen.

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O que tem de ser dado [aos requerentes de asilo] é uma triagem individualizada e imediata. Essa triagem tem várias vantagens. Por um lado, permite despistar os verdadeiros refugiados daqueles que não são refugiados. Por outro, permite garantir a segurança das fronteiras europeias e da segurança dentro da Europa.”

A segurança e o combate ao terrorismo, explica o ex-diretor do Observatório das Migrações, podem ser garantidos se o processo de triagem for feito por “alguém que fala árabe, que tem treino geoestratégico, que conhece a situação de conflito”. “Mal seria se um técnico especializado da UE, dos serviços de informação, dos serviços de segurança, não fosse capaz de numa conversa distinguir alguém que foge com medo da guerra de alguém que esteve num campo de treino [para terroristas]”, garante.

Portugal só tem 26 refugiados. “Isso deve-se à incapacidade da linha da frente”

A efetiva aplicação de um processo de triagem de quem chega à Europa terá ainda a vantagem de “permitir uma recolocação muito mais rápida”, defende, dando o exemplo de Portugal, que se comprometeu a receber um número de refugiados que demoram a chegar. “Portugal comprometeu-se a receber cerca de 5 mil pessoas e tem capacidade para isso, todos os líderes políticos dizem-no, as entidades já estão no terreno, a Plataforma de Apoio aos Refugiados (PAR) já disse que tínhamos capacidade para receber essas pessoas”, diz, para depois concluir. “Mas só chegaram 26! O que demonstra o absurdo de tudo isto. E isto deve-se em larga medida à incapacidade da linha da frente.”

“Incapacidade da linha da frente”, leia-se, incapacidade da Grécia — mas não por culpa de Atenas. “A Grécia não tem recursos para isso, como é manifesto. E a resposta que alguns países da UE têm para dar é deixar a Grécia ainda mais isolada e excluí-la de Schengen. Evidentemente não é essa a resposta que tem de ser dada nem é essa a resposta que o regulamento de Dublin exige que seja dada”, defende.

“Se o esforço de acolhimento e recolocação for feito de forma ordeira e profissional passará sem grandes sobressaltos”, garante. “Com dificuldades, com desafios, mas sem grandes sobressaltos. Os sobressaltos resultam de uma entrada desorganizada e naturalmente de um impacto que isso tem nas sociedades que não estavam devidamente preparadas para os receber.”

“A Europa tem de se sentar e perceber quantos técnicos tem disponíveis, quais são os recursos que tem disponíveis, em quanto tempo é que os consegue mobilizar. Em verdade isto está a ser discutido desde maio do ano passado e essa resposta ainda não existe”, refere, em alusão à tomada de medidas que se seguiram ao naufrágio que causou a morte a mais de 900 pessoas numa traineira com destino a Itália, em abril de 2015. “Se essa resposta não for dada, o problema só se vai agravar. E já vamos muito tarde.”

“Dinamarca tem o objetivo de dissuadir os refugiados”

Na ordem do dia está também a lei que o parlamento dinamarquês aprovou, tornando possível que sejam confiscados aos refugiados bens cujo valor exceda os 1340 euros. No mesmo contexto está a situação na Alemanha, o país que recebeu mais de 1 milhão de refugiados em 2015 e que, depois do choque da noite de Ano Novo em Colónia, viu crescer de forma ímpar o descontentamento perante a situação.

“A lei dinamarquesa, e outras que têm sido aprovadas nesta linha, têm sobretudo o objetivo de dissuadir a procura de refugiados”, diz. “Isto insere-se numa estratégia mais vasta, que vai até à divulgação de informações em jornais de circulação no Médio Oriente para no fundo dissuadir os refugiados de virem para a Europa e para alguns países em concreto.”

Gonçalo Matias chega a referir que a exclusão de bens de valor sentimental dentro daqueles que podem ser confiscados, segundo a lei dinamarquesa, é sintomático do debate que está a ser formado em torno deste assunto: “Quando o tema de discussão é já se os anéis ou as alianças estão excluídas, isso demonstra o absurdo da questão”.

Para o especialista, a discussão devia antes estar centrada na aparente reversão de postura perante os refugiados precisamente na altura em que estes cada vez mais chegam à Europa. “O que é que está na origem de tudo?”, questiona-se. “Porque é que a Europa, e países que estavam na vanguarda da defesa dos direitos fundamentais na Europa estão a inverter essa tendência?”

A necessidade de dar formação “a quem chega e quem recebe”

Segundo Gonçalo Matias, a solução passará pela implementação de programas de formação amplos, aplicados “a quem chega e a quem recebe”. Do lado dos que chegam, o especialista defende que “qualquer acolhimento de pessoas que provêm de um contexto cultural distinto é um acolhimento que tem de ser feito de forma organizada e de forma informada”. Ainda assim, nega a utilidade de cursos destinados a homens refugiados que incidem no ensino de normas do respeito pela liberdade sexual das mulheres na Europa, defendendo antes formações mais amplas. “Eu diria que, se as formações só passam por isso, talvez sejam redutoras, porque há muito mais a formar para além disso”, defende.

A formação e informação são sempre necessárias. Trata-se de pessoas que passaram por situações de conflito, de guerra, e que portanto têm necessidade de acompanhamento pós-traumático, até formação cultural linguística. Portanto eu não focaria necessariamente nesse aspeto. Mas a adaptação também passa por perceber qual é o papel da mulher na sociedade.”

E do lado de quem recebe, Gonçalo Matias defende que é “inquestionável que a diversidade cultural enriquece as nossas sociedades”, e que é preciso “formar as nossas sociedades, as nossas crianças”. “É evidente que a diversidade cultural também traz desafios”, contrapõe. “Não é nada de novo. Paris vive com dificuldades, num certo sentido Londres também e Bruxelas também vive com esses problemas. Em qualquer caso eu acho que é inquestionável, os estudos científicos demonstram-no, que as nossas sociedades ganham com a diversidade cultural.”

Mas além de Paris, Londres e Bruxelas, existem também outros sítios. Como Penela, um dos primeiros sítios em Portugal que se prontificaram a receber refugiados recolocados na sequência da atual crise. “Quando essas pessoas chegarem a Penela e forem bem recebidas, bem acolhidas e perceberem que estão a viver numa comunidade que os integra bem, que os recebe bem, rapidamente se integram.”