Preparem-se: vêm aí os russos, e carregados de filmes. Começa na quinta-feira, dia 11, no Espaço Nimas, em Lisboa, e no Teatro Municipal Campo Alegre, no Porto, uma retrospectiva integral da obra de Andrei Tarkosky. Será o primeiro tempo de um grande Ciclo de Cinema Russo, que incluirá fitas de realizadores como Eisenstein, Vertov, Dovjenko ou Romm, entre outros, e que culminará com a estreia dos novos filmes de Andrei Konchalowski (que foi colega e colaborador de Tarkovsky), “As Noites Brancas do Carteiro”, e de Alexander Sokurov, “Francofonia”. A integral da obra de Tarkovsky prolonga-se até dia 16 de Março e terá extensões a Coimbra, Braga, Setúbal, Figueira da Foz e Castelo Branco, entre outras cidades.

Além das sete longas-metragens realizadas por Andrei Tarkovsky (1932-1986), as cinco primeiras na ex-URSS, as duas últimas na Europa (Itália e Suécia), passam também, em quatro sessões únicas, os seus filmes de estudante e a sua realização de final de curso, “O Rolo Compressor e o Violino”; assim como vários filmes documentais relacionados com Tarkovsky e com a sua obra, caso de “Tempo di Viaggio”, co-assinado pelo realizador e por Tonino Guerra, “Los Dias Blancos – Apuntes Sobre el Rodaje de Nostalgia de Andrei Tarkovsky”, de Jose Manuel Mouriño, “Elegia de Moscovo – Andrei Tarkovsky”, de Alexander Sokurov, “One Day in the Life of Andrei Arsenevich”, de Chris Marker, e “Meeting Andrei Tarkovsky”, de Dmitry Trakowski. No Espaço Nimas, haverá uma exposição com reproduções de desenhos do guarda-roupa e fotografias inéditas da rodagem de alguns filmes do autor de “Solaris”, pertencentes ao arquivo da sua colaboradora Nelli Fomina.

[Andrei Tarkovsky fala aos jovens realizadores]

Nascido na ex-URSS, Tarkovsky exilou-se na Europa em 1984 e morreu de cancro em França dois anos depois, com apenas 54 anos, em condições ainda hoje não inteiramente esclarecidas, tendo à altura corrido que teria sido envenenado pelo KGB. O cineasta assinou, pelo menos, uma das obras-primas da história do cinema, “Andrei Rublev” (1966), a sua segunda longa-metragem. Que, tal como as três seguintes que rodaria no seu país, deparou com as reticências, a incompreensão e a repressão por parte das autoridades estatais comunistas e foi censurada e truncada (o que sucedeu também quando da sua exibição nos EUA, quando a distribuidora americana amputou em 20 minutos uma cópia já muito tesourada na origem).

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Mergulhando em profundidade na cultura, na identidade, na espiritualidade e na natureza russa, e expressando numa linguagem cinematográfica rasgadamente pessoal, poética, densa e por vezes quase cifrada, as convicções, interesses, interrogações e o visionarismo do realizador, os filmes de Andrei Tarkovsky são intensamente líricos, oníricos e simbólicos (os quatro elementos atravessam toda a sua filmografia nesta condição), trabalhando cuidadosamente o tempo e a duração, bastante avessos a estruturas narrativas convencionais e construções dramáticas familiares, e existindo num circuito fechado só conhecido pelo cineasta. O que torna alguns deles quase crípticos e de acesso difícil e exigente.

[Excerto do documentário de Chris Marker]

Embebidos de misticismo (embora não necessariamente cristão), vêm carregados (por vezes em excesso, quase até roçar o pomposo e o portentoso) de intenções filosofantes, preocupações artístico-intelectuais e reflexões sobre a existência humana, as suas dores, contradições e absurdos, veiculando uma visão muito pessimista do estado da cultura ocidental e um discurso tão contrário ao valor e à importância do conhecimento e ao progresso científico, como elogioso do génio artístico individualista, solitário e irrepetível.

[Rodagem de “Nostalgia”]

Daí que à genuflexão cinéfila bastante generalizada à obra de Andrei Tarkovsky se contraponha a reticência por parte de alguns críticos e historiadores de cinema. Um exemplo é David Thomson, que no seu The New Biographical Dictionary of Film rema contra a maré alta de encómios e alinha, na entrada dedicada ao realizador, a par de vários elogios, uma série de críticas à sua obra, como o abuso de “retórica” (um defeito, aliás, de quase todo o cinema russo, lastro dos tempos sentenciosos do realismo socialista) e de “auto-importância”, e “uma perfeição que tem em si algo de monstruoso” e “tirânico”, despertando no espectador “irreverentes pensamentos de resistência”. Thomson dá como exemplo “Nostalgia”, o penúltimo filme de Tarkovsky, “deliquescente, a transbordar de dor – e à beira do paródico”. E que é, apesar da sua indiscutível e inefável delicadeza visual, uma prova de resistência ao mais fiel admirador do cineasta.

Estes são os sete filmes realizados por Tarkovsky — todos vão passar em Portugal.

“A Infância de Ivan” (1962)

A primeira longa-metragem de Tarkovsky centra-se num rapazinho que, durante a II Guerra Mundial, arrisca a vida atrás das linhas alemãs para dar informações aos militares russos. Revelando já as qualidades líricas, o sentido agudo da natureza e a originalidade do olhar do realizador, a obra está, no entanto, muito presa ao formato do filme de propaganda comunista ambientado durante a “grande guerra patriótica”. O jovem Nicolai Burlyayev, intérprete de Ivan, apareceria também no filme seguinte de Tarkovsky, “Andrei Rublev”. “A Infância de Ivan” recebeu, ex aequo com “Crónica Familiar”, de Valerio Zurlini, o Leão de Ouro do Festival de Veneza.

“Andrei Rublev” (1966)

Tarkovsky apoiou-se na biografia de Andrei Rublev, celebrado pintor russo de ícones do século XV, para realizar este filme onde toca temas como a singularidade do génio artístico, a expressão da religiosidade na arte ou a situação do artista criador em condições sociais, históricas e políticas violentamente adversas. As autoridades soviéticas não gostaram de nada na fita, desde a duração (três horas) ao anti-materialismo e ao apelo à espiritualidade da história, e “Andrei Rublev” foi interdito de exibição, censurado e mutilado. O filme, todo ele uma sucessão de grandes momentos de cinema, desde a inesquecível cena de abertura com o homem no balão sobrevoando os campos, à espantosa detonação de cor no final com a sequência de ícones.

“Solaris” (1972)

O realizador russo desprezava a ficção científica e por isso, esta adaptação do livro homónimo de Stanislaw Lem sobre um planeta sentiente que induz visões e distúrbios mentais nos tripulantes de uma estação especial que orbita sobre ele, serviu para Tarkovsky filmar uma alegoria sobre a obsessão do homem em conhecer os segredos do universo, quando no fundo não sabe quase nada sobre si mesmo e a sua natureza. Lem, que colaborou com o realizador no argumento, repudiou a fita, dizendo que aquele tinha filmado Crime e Castigo em vez do seu livro, e a verdade é que “Solaris” é um laborioso pastelão “existencial” disfarçado de grande produção de ficção científica. Mesmo assim, ganhou o Grande Prémio do Festival de Cannes.

“O Espelho” (1975)

Este é o filme mais autobiográfico do cineasta, rodado a preto e branco e a cores, belíssimo, comoventíssimo e de uma inventividade formal brilhante na sua descontinuidade e onirismo. “O Espelho” desafia qualquer discrição e inspira-se directamente na vida familiar e na infância e juventude de Andrei Tarkovsky (por exemplo, a personagem do poeta moribundo cujas recordações partilhamos baseia-se na figura do seu pai, o grande poeta e tradutor Arseny Tarkovski, e o seu filho Ignat é o próprio realizador), abrangendo quer a intimidade da família quer grandes acontecimentos do século XX como foram vividos na ex-URSS, e espalhando-se por três planos temporais: antes da II Guerra Mundial, durante e depois, nas décadas de 60 e 70.

https://www.youtube.com/watch?v=tpaA5PG2rkY

“Stalker” (1979)

Andrei Tarkovsky regressou à ficção científica neste filme onde adapta um livro dos irmãos Boris e Arkady Strugatsky, seus compatriotas. Num futuro indeterminado, miserável e aparentemente totalitário, um homem, o Stalker do título, guia dois outros, um escritor e um cientista, pela Zona, uma área interdita e vigiada por militares, onde não funcionam as mesmas leis do mundo normal e existem vários perigos, bem como um local mítico, o Quarto. A fita foi rodada em estruturas industriais abandonadas da Lituânia, e o cineasta volta a apropriar-se de uma história de ficção científica (esta encapotadamente crítica do regime comunista soviético, como era habitual nos irmãos Strugatsky), para rodar um verboso mas hipnótico filme de pendor filosofante, dominado pela visualização da Zona e envolvido na banda sonora electrónica de Eduard Artemyev.

“Nostalgia” (1983)

Primeiro filme rodado fora de portas por Tarkovsky, em Itália, e escrito a quatro mãos com o argumentista Tonino Guerra, “Nostalgia” era uma co-produção russo-italiana, mas quando o apoio estatal lhe foi retirado no seu país o cineasta filmou-o com a parte do orçamento dado pela RAI e com dinheiro obtido em França. Andrei, um escritor russo, vai para Itália pesquisar a vida de um seu compatriota compositor que ali viveu no século XVIII e se suicidou após regressar à Rússia, e na Toscana trava conhecimento com Domenico, uma estranha personagem. Cheio de referências à pintura medieval italiana, o filme atola-se num tédio pesado e amaneirado. A hostilidade com que foi acolhido pelas autoridades soviéticas e as pressões que estas fizeram para evitar que fosse premiado no Festival de Cannes (onde Tarkovsky foi Melhor Realizador e partilhou um prémio especial com Robert Bresson, um dos dois cineastas que mais admirava, junto com Ingmar Bergman), levou-o a tomar a decisão de se instalar no Ocidente.

“O Sacrifício” (1986)

O derradeiro filme de Tarkovsky é uma alegoria poético-existencial de ressonâncias religiosas, rodada na Suécia, onde o cineasta se juntou a colaboradores de Ingmar Bergman, como Erland Josephson no papel principal (já tinha aparecido em “Nostalgia”), Sven Nykvist na direcção de fotografia e na co-produção, e até Daniel Bergman, filho do autor de “O Sétimo Selo”, na equipa de técnicos. A personagem de Josephson é um actor, jornalista e professor que vive com a família à beira-mar e vê pelas notícias que o mundo pode estar à beira de um conflito nuclear (há que ter em conta a tensão política existente entre as duas superpotências, EUA e URSS, quando a fita foi feita). Decide então dirigir-se directamente a Deus, oferecendo-se a si, às suas posses terrenas e aos que ama, em sacrifício, para evitar a guerra e o possível fim do mundo. “O Sacrifício” deu ao cineasta um segundo Grande Prémio em Cannes. Poucos meses depois, Andrei Tarkovsky morria em Paris.