Ganar o Morir: leciones políticas de Juego de Tronos é uma coletânea de ensaios publicada pela Akal (2014, ainda não traduzido em português). Compõe-se de uma apresentação de Pablo Iglesias, organizador da obra, um prólogo de Juan Carlos Monedero, um epílogo de Antonio J. Antón Fernández — Las Tres Domas del Dragón — e de onze ensaios, entre os quais dois assinados ou co-assinados pelo organizador. Pablo Iglesias, como toda a gente provavelmente sabe, é um jovem académico espanhol que lidera o partido irmão em Espanha dos nossos Blocos de Esquerda e do Syriza grego. O líder carismático do Podemos chefia o partido sob a modesta designação de secretário-geral (entre nós, o Bloco nem secretário-geral tem: com redobrada falsa modéstia tem uma ‘Mesa Nacional’ e ‘porta-vozes’ e ‘coordenadores’).

A ideia do livro — que é uma interessante ideia — surgiu, segundo o seu promotor, porque “embora em princípio pudesse parecer que a chave do êxito [desta série] é simplesmente uma eficaz combinação de intrigas, violência, aventuras e sexo inscrita num cenário de ressonâncias românticas (…) vai, no entanto, muito além disso: o cenário de destruição da ordem civil e política que nos apresenta a série, bem como a luta de morte pela conquista do Trono de Ferro, ecoa certo pessimismo generalizado e certa consciência obscura do fim da nossa civilização ocidental tal como a conhecemos“. “O inverno está a chegar”, de resto, é um dos leitmotiv da série que mais é citado ao longo destes ensaios, com indisfarçada satisfação: é nesse inverno do nosso descontentamento, de desagregação do presente sistema democrático e das nossas sociedades, que os autores veem, afinal, a oportunidade de fazer su agosto, para usar a expressão popular espanhola. Mas demos a palavra, de novo, ao responsável:

“Juan Carlos Monedero brinda-nos uma perspetiva panorâmica de ‘A Guerra dos Tronos’ explorando as relações entre a cultura e a política nos tempos que correm, através de múltiplas referências. A relação entre legitimidade e poder que assinalo nesta apresentação e que desenvolvo com Luis Alegre e Daniel Iraberri no primeiro capítulo, aparece também com diferentes formulações nos capítulos de Rúben Martínez e Iñigo Errejón. Da mesma maneira que o Maquiavel de O Príncipe está nos textos de Eneko Compains e Héctor Meleiro. No capítulo que assino sozinho Maquiavel regressa para continuar a discutir, desta vez, a complexíssima relação entre poder duro e hegemonia. Interessava-me também contar com a visão de um politólogo conservador procedente das escolas realistas e Rúben Herrero de Castro prestou-se generosamente à empresa com um texto que demonstra que a série pode permitir um enorme nível de diálogo entre diferentes escolas de pensamento. Tania Sánchez consegue, nas suas próprias palavras, ‘dar o salto conceptual da fantasia de ‘Guerra de Tronos’ para a realidade da política partidária pátria’, analisando como o ‘Trono de Ferro’ interior de cada partido é um elemento incontornável, em qualquer democracia, para a conquista do poder político real. Não podia faltar na análise de ‘A Guerra dos Tronos’ a perspetiva de género para entender os papéis femininos da série e Cristina Castillo e Sara Porras aprofundam no seu capítulo o tema dos personagens femininos e a sua relação com o poder. O problema do sujeito é abordado no capítulo de Clara Serra e Eduardo Fernández em que entram nos personagens excluídos da série, analisando as suas solidariedades e o seu empowerment. Santiago Alba Rico, por seu lado, analisa os defeitos físicos de alguns personagens e o papel das diferentes implicações políticas das áreas climatéricas. Por último, Antonio Antón, numa avassaladora exibição de erudição, reflete sobre a figura do dragão.’ São todos interessantes, quanto mais não seja para nos manter em dia sobre o que passa por certas cabecinhas, mesmo – vão desculpar-me – o Game of Roles: la subversión feminista.

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A capa do livro coordenado por Pablo Iglesias

Perpassa em todos os ensaios deste livro a ideia de que vivemos uma nova idade média. Não é uma ideia nova. Vinte anos antes do Alain Minc de Le Nouveau Moyen Âge (1993), citado num dos ensaios de Ganar o Morir, já Umberto Eco escrevera o ensaio A Idade Média já começou e, ao lado de Alberoni, Colombo e Sacco, publicava Documenti su il nuovo medioevo. A comparação é tentadora – embora enganadora como quase todas as analogias históricas, se forem tomadas literalmente. A descrição que faziam de um mundo em que a “dissolução dos vínculos sociais, a privatização do poder e os sangrentos conflitos neo-feudais”, parece hoje, no princípio de um novo auge da globalização e talvez do seu temporário fim, mais atual do que em 1973: os Estados-nação em desagregação na Europa, a ascensão dos poderes económicos e financeiros e das organizações supranacionais — pelo menos na forma tentada — e a fragmentação das sociedades com o regresso aos feudos e barões que sintomaticamente surgem a toda a hora na linguagem política, são o pão nosso de cada um dos nossos dias sem horizontes. Não era esse exatamente o mundo da Idade Média, em que ainda existia a “transcendência” de que fala Jean Baechler no seu magistral Le Pouvoir Pur – mas é esse o mundo do falso medievalismo de “A Guerra dos Tronos” – e, em certa medida, parece-se de facto com o nosso.

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Os ensaios de Ganar o Morir cobrem apenas as três primeiras temporadas da série televisiva (está prevista para abril deste ano a estreia da sexta). Com certo descaramento – ou aquela preocupante noção dos limites do pluralismo a que a Esquerda nos habituou – Iglesias diz na apresentação que pediu “colaboração a todos aqueles que entendi que podiam contribuir ideias interessantes, sem me importar com a sua filiação política”: os 16 autores participantes, com uma única e inócua exceção, são dirigentes ou membros do Podemos ou pertencem a partidos ou organizações marxistas. Não admira a abundante presença neste livro de Antonio Gramsci, fundador do Partido Comunista Italiano e grande teórico da revolução cultural – o do “pessimismo da inteligência, otimismo da vontade”, tão paradoxal num marxista. Nem a de Marx e, sobretudo, a de Lenine – ou a de Naomi Klein, de Chantal Mouffe (O Regresso do Político, Deus seja louvado), de Zizek, de Giorgio Agamben ou de Perry Anderson, expoentes bem conhecidos do pensamento da novíssima nova esquerda, do neo-marxismo que tem neste momento na Grécia, em Espanha ou em Portugal os seus quinze minutos de equívoca notoriedade política. Pode parecer mais estranho — a quem não costume frequentar os textos teóricos desses críticos da democracia ‘burguesa’ — que abundem também nas bibliografias ou nos textos, as referências a Tucídides, Hobbes, Carl Schmitt, Max Weber, Hannah Arendt. Ou a Maquiavel, figura tutelar deste livro. É a retribuição da extrema-esquerda à extrema-direita que tanto gostou de ler Gramsci. Como poderia dizer o autor de A formação dos intelectuais e diz um dos personagens de “A Guerra dos Tronos” (Twynn Lannister), “some battles are won with swords and spears, others with quills and ravens” (a pena, às vezes, é tão forte como a espada?). Ou, na boca do próprio Iglesias, numa recente entrevista ao “Financial Times”:

A realidade é definida pelas palavras. De modo que quem for dono das palavras tem o poder de moldar a realidade.”

Há imagens que valem mil palavras: a capa de Ganar o Morir ostenta Pablo Iglesias sentado num trono. Estamos perante confessos projetos de poder: “As pessoas vêm ter comigo e tocam-me” (são palavras do deslumbrado Iglesias milagreiro). Nesse aspeto, aprendemos uma lição política mais relevante para a atualidade imediata na reveladora entrevista do “Financial Times” do que em todo o subtil e interessante palavreado de Ganar o Morir. É um projeto perigoso mas de certa maneira oco. Tirando os queridos logros “fraturantes”, as grandes palavras de “novas eras” e de futuros radiosos resolvem-se na “defesa dos salários e das pensões” que se mede em cêntimos ou numa pífia “reforma de la vivienda”. Na Grécia, o projeto consumou-se na tortuosa e pírrica ascensão à chefia do governo de Alex Tsipras. Em Portugal e em Espanha, o Bloco de Esquerda e o Podemos obtiveram, para já, uma vitória, a aparência de que governam, em nome de todos, com dez ou vinte por cento dos votos: “Um homem pequeno pode projetar uma grande sombra”, aprende-se em “A Guerra dos Tronos”. Mas, no fim, o anão continua a ser um anão.