“O que raio estás a fazer?” O telemóvel tocara e, mal o atendera, Luciano Spalletti ouvira isto a sair da boca do filho. Até ele estava incrédulo, não percebia a decisão ousada do pai numa cidade que a via como um pecado. Tinha acabado de saber como ele, o treinador da AS Roma, tirara um homem dos convocados e não o deixou entrar na concentração da equipa antes da partida contra o Palermo. Não era um homem qualquer, como Spalletti e o filho bem o sabiam: em casa, na parede onde têm “camisolas de futebol penduradas”, há “sete ou oito” que são dele. De Francesco Totti, que aos 39 anos é talvez o único homem que nos põe a pensar se, realmente, um clube é sempre maior que um jogador.

Tinha ele cabelo comprido, risco ao meio e nem uma ponta de barba na cara quando, aos 16 anos, uma adolescência a rebentar de talento o faz estrear-se. Um treinador achou que, em 1992, era altura de o mostrar e aí começou a história de amor. São 750 encontros marcados, em que Totti se chegou à frente com 300 golos. Pelo meio houve um casamento, quando ele e a Roma juntaram de vez os trapos para usarem o anel da Série A, em 2001. Convidou-se uma cidade, milhares de pessoas que rejubilaram com a única conquista de campeonato nos últimos 24 anos. Francesco ficou e foi ficando, dizendo que não ao Real Madrid que por várias vezes forçou um divórcio e o tentou convencer a emigrar. De relações extraconjugais só uma era aceite e por ela ajudou a Itália a vencer o Mundial de 2006 com uns parafusos no tornozelo.

Francesco Totti é uma lenda, ponto, uma que o bom senso diz para não se tocar. Luis Enrique, treinador do Barça 2.0 que engole todos os títulos, ou Claudio Ranieri, italiano que manda no Leicester que se arrisca a ser campeão em Inglaterra, tocaram-lhe no seu tempo e sentiram como isso era arriscado. Foram criticados, ouviram apupos dos adeptos e leram críticas na imprensa quando ousaram mostrar a Totti o que era estar no banco de suplentes. Mais fez Luciano Spalletti, que decidiu não o convocar nem o deixar estar com a equipa antes do jogo deste domingo, para o campeonato. E agora o futuro do casal parece estar tremido.

ROME, ITALY - SEPTEMBER 20: Francesco Totti of AS Roma looks on during the Serie A match between AS Roma and US Sassuolo Calcio at Stadio Olimpico on September 20, 2015 in Rome, Italy. (Photo by Paolo Bruno/Getty Images)

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O treinador chegou a Roma em janeiro e, em sete jogos no campeonato, Totti esteve apenas num deles. Jogou meia hora. Na passada semana foram três os minutos que jogou frente ao Real Madrid. O ídolo de uma cidade, o homem cuja imagem é graffiti de parede e fotografias que decoram restaurantes, só aparecia quando nada se podia resolver. Os jornais farejaram o cheiro do desgosto e Rai conseguiu colocar Francesco a falar para um microfone. “Percebo que com a minha idade jogue menos, mas terminar a carreira assim é mau para mim como um homem e por tudo o que dei à Roma. Exijo mais respeito por tudo o que fiz aqui”, disse, chateado por um “bom dia” e uma “boa noite” ser tudo o que resta da relação com Luciano Spalletti. O mais estranho até será isso.

Porque foi com este italiano que o capitão da Roma mais exportou a sua lenda para a Europa. O treinador também esteve no clube entre 2005 e 2009 e houve uma temporada em que Totti marcou 26 golos no campeonato (2006/07). Foi Bota de Ouro europeu e esses anos muito contribuíram para hoje ser o segundo melhor marcador de sempre da Série A — está a 30 remates para dentro de baliza de igualar os 274 golos de Silvio Piola. Com este treinador, Totti tirou proveito da idade para deixar de ser um número 10 de passes, golos bombásticos e toques bonitos e tornou-se o que ficou na moda chamar-se de falso 9. “O meu objetivo é conseguir resultados e faço as minhas escolhas com base nisso, não no historial de um jogador”, resumiu o treinador, antes do jogo contra o Real Madrid, para a Liga dos Campeões, e antes de dispensar Totti dos convocados contra o Palermo, partida em que ouviu das boas.

Os adeptos presentearam-no com assobios, muitos, quando o speaker anunciou o nome do treinador pelas colunas do Estádio Olímpico de Roma. Pelo meio, aqueceram as gargantas com quase tantos cânticos para Totti como para a equipa. Il Capitano, ou Il Bimbo D’Oro, como lhe chamam, estava sentado na bancada e ia tapando a cara, sinal de quem estava emocionado. No campo a equipa acelerava para um atropelamento de 5-0, a quarta vitória seguida no campeonato que pareceu ter somenos relevância para os adeptos. E Luciano Spalletti apercebeu-se disso. “Com a sua personalidade e carisma, pode fazer o que quiser: jogar, copiar o Giggs [adjunto de Van Gaal no Manchester United] ou ser como o Nedved [está na direção da Juventus]. Mas tenho de restaurar esta equipa e não posso fazer dele um caso especial. Mesmo que discutir com ele seja a última coisa que quero fazer”, explicou, após o jogo.

Deverá evitá-lo se não quiser ser o único alvo de assobios até nos jogos em que a Roma ganha. E a menos que pretenda ficar conhecido como o treinador que levou Francesco Totti a não ter uma 24.ª época no único clube que conheceu. “Não exijo jogar, nunca o fiz e não é agora que vou começar. O meu contrato acaba em junho e vou analisar a minha situação, porque não posso continuar assim. É difícil estar no banco. Vou esperar notícias do [James] Pallotta”, admitiu o jogador, ao falar no presidente da Roma que vive nos EUA, não fala italiano e com o qual apenas se encontrou uma vez desde 2012, quando o norte-americano comprou o clube. É por isto que já se teme um divórcio.

Há várias épocas que Francesco Totti tem renovado anualmente o contrato. Hoje o capitão é apenas o oitavo mais bem pago do plantel e o The Guardian, aliás, escreve que, caso não seja renovado, o vínculo tem uma cláusula que manterá o italiano por mais cinco anos nos giallorossi — mas como dirigente. Será mais fácil ver Totti de fato e gravata do que equipado com a camisola de outro clube. E poucas pessoas quererão dizer “Ciao, capitano” quando a temporada acabar.