A cada novo filme de Terrence Malick que vejo, mais me convenço que o realizador de “Dias do Paraíso” devia ter optado por uma carreira na filosofia, a sua área de formação universitária (é especialista nas obras de Kierkegaard, Wittgenstein e sobretudo Heidegger, do qual é também tradutor) e não no cinema. Esta convicção acentuou-se ainda mais depois de ter sofrido as duas intermináveis horas de “Cavaleiro de Copas”, o mais recente filme de Malick após “A Árvore da Vida” (2011), com o qual voltou à realização após um silêncio de seis anos, e “A Essência do Amor” (2012), de forma tão escancarada se manifesta aqui o fracasso do seu cinema laboriosamente simbólico, críptico, filosofante e cada vez mais abstrato, embora de uma beleza visual por vezes arrebatadora. Os zelotas de Malick que me desculpem, mas ele devia estar a escrever livros e não a fazer filmes.

[Veja o “trailer” de “Cavaleiro de Copas”]

Rodado mais uma vez sem rede de argumento e em boa parte improvisado pelos atores – Christian Bale, o principal intérprete, confessou no Festival de Berlim de 2015, onde a fita esteve em competição, que durante as filmagens, não fazia a menor ideia do tema da fita nem quem era a sua personagem – “Cavaleiro de Copas” tem uma estrutura enigmática, sendo dividido em oito partes, sete das quais com o nome de cartas do Tarot (uma outra dá-lhe o título) e vai buscar inspiração à obra “Pilgrim’s Progress”, do autor católico inglês John Bunyan, uma alegoria escrita no século XVII, e a um texto apócrifo do Novo Testamento, de inspiração gnóstica. E a nada disto e aos conceitos intelectuais que pretende transmitir com estas referências Terrence Malick consegue dar formato narrativo adequado, expressão dramática, concretização em situações e na interação das personagens.

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[Veja a entrevista com Christian Bale]

O filme é um gesto vago, pretensioso, indecifrável, que a estratégia visual e sonora do realizador nunca consegue transformar em discurso consistente e percetível, ficando-se por um lirismo gasoso, uma sucessão de imagens de uma beleza aleatória e inútil, captadas em “scope” pelo triplamente oscarizado Emmanuel Lubezki (não é por acaso que “Cavaleiro de Copas” ecoa tanto em “The Revenant”). Bale interpreta, ao que podemos perceber, um argumentista de sucesso de Hollywood que está a atravessar aquela que deve ser a mais chata, pedante e exasperante crise existencial da história do cinema, enquanto se debate com recordações familiares dolorosas envolvendo o pai (Brian Dennehy), o irmão (Wes Bentley) e a ex-mulher (Cate Blanchett), envolve com uma rapariga (Natalie Portman) e frequenta festas chiques e loucas, obviamente simbólicas da superficialidade, do hedonismo e da vacuidade da vida em Hollywood, e onde está sempre Antonio Banderas com os copos. Vem tudo acompanhado pela habitual vaga narração em “off”, um tique estilístico datado do primeiro filme do realizador, “Noivos Sangrentos” (1973), do tempo em que Malick ainda fazia cinema tangível e satisfatoriamente narrativo.

[Veja a entrevista com Natalie Portman]

“Cavaleiro de Copas” resulta num filme vácuo sobre o vazio, o desespero da consciência desse vazio e a jornada espiritual empreendida para o ultrapassar, que quanto mais a sério se leva mais afetado se torna, e se perde numa espiritualidade difusa e numa transcendência de pacotilha sublinhada a traços grossos. E que por várias vezes ora se assemelha a uma caricatura de um filme de Terrence Malick feita por um parodista talentoso, ora se aproxima de uma certa publicidade a armar ao pingarelho de estetizante, daquela filmada em grandes espaços inóspitos ou praias desertas a perder de vista (as personagens do realizador têm uma desconcertante tendência para se atirarem à água vestidas. Será também simbólico de alguma coisa?). Há quem revire os olhos de êxtase e jure a todos os santinhos pelo autor de “Cavaleiro de Copas”. Eu cá, e sobretudo depois de ter passado pela provação que é este filme, estou cada vez mais de pedra e cal no campo dos ateus militantes de Malick.