Há já alguns anos que George Martin estava proibido de ouvir música. As décadas de exposição contínua a bandas e orquestras com o som no máximo tiveram as inevitáveis consequências na audição do produtor que ajudou a mudar a função do estúdio de gravação e a música — a pop, claro, mas não só. Não foi apenas com os Beatles que trabalhou. Entre a BBC e Abbey Road, foi um mestre para as obras de compositores clássicos e para outros que ambicionavam a fama e a glória que pode surgir com a canção urbana (além de gravações com mestres da comédia como Peter Sellars). Mas foi com os Beatles que fez a inegável história registada em discos insuperáveis — dos fab four só não produziu “Let it Be”. Ainda durante a década de 70, Martin admitiu que foi fundamental no trabalho da banda. Não disse que a mudou para melhor, a sua pose de gentleman nunca o permitiria, mas não precisou de o afirmar. Aqui escolhemos oito provas dessa influência. Uma amostra é isto mesmo, coisa curta. Com espaço e tempo as cantigas eram outras:

Please Please Me

O segundo single dos Beatles e o primeiro número um da banda. George Martin teve a influência esperada de um produtor mas com um extra: quando disse aos quatro músicos que a canção devia ter um tempo mais acelerado sabia porque é que o fazia. Quando o tema ficou pronto, Martin atirou a histórica frase: “Meus senhores, acabaram de gravar o vosso primeiro número um.”

https://www.youtube.com/watch?v=he0B0VMxCsw

Yesterday

Continua válida a história de Paul McCartney sobre Yesterday, a mesma que diz que a canção apareceu num sonho. O músico não mais a largou até a completar. George Martin, depois de ouvir o que McCartney tinha, apenas com voz e guitarra acústica, atirou um “isto ficava bem era com um quarteto de cordas”. Paul, filho do rock’n’roll, assutado com aquela ideia sentimental, disse que talvez não fosse boa ideia. Enfim, a história tratou do assunto.

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In My Life

Um dos momentos de génio de “Rubber Soul” — na verdade são 14 em 14, no álbum de 1965 que começou a mudar os Beatles — tem um piano que não é bem o que parece, nem no som nem na velocidade. A parte foi escrita pelo produtor, que não conseguia tocar com a velocidade que pretendia. Fê-lo mais devagar, acelerou a fita e chegou ao resultado que neste vídeo toca quando estiver a chegar ao minuto e 30.

https://www.youtube.com/watch?v=DUDje4cTev0

Eleanor Rigby

A canção de McCartney é também a canção de George Martin. Os arranjos de cordas são o reflexo da sua sensibilidade melódica e harmónica, elegância mas sem preguiça, um sentido clássico sempre à procura de atitude. Martin confessou-o várias vezes: para “Eleanor Rigby”, George Martin queria seguir o que Bernard Herrmann procurava fazer nas suas bandas sonoras — a de “Psycho” era o exemplo mais usado, violinos entre notas curtas, tensas e decisivas.

A Day in The Life

É provavelmente o tema mais vezes apontado como o “melhor dos Beatles”, essa discussão inútil no objetivo mas maravilhosa no conteúdo e no processo. Mas — e cá vamos nós outra vez — se não fosse Sir George Martin e o delírio pop da dupla Lennon/McCartney não tinha atingido aquele clímax incomparável no final do álbum “Sgt Pepper’s Lonely Hearts Club Band” (na verdade, todo o disco é resultado da técnica de Martin, um destemido pioneiro na arte do “corta e cola” de estúdio, das sobreposições e manipulações sonoras). A meio da canção, uma orquestra perde o norte e sobe em direção ao infinito. A indicação de George Martin aos músicos, como recordada ao Wall Street Journal em 2012, foi “se estiverem a tocar a mesma nota que o vosso colega do lado é porque algo está mal”.

Revolution

O álbum todo, isso mesmo, os quatro lados dos dois discos são provas da cumplicidade irrepetível entre banda e produtor, daquelas que faz com que o mestre do estúdio seja tão importante com os músicos em sessão. O épico registo de 1968 tem 30 faixas e nenhuma está a mais, nada. Tudo foi trabalhado ao detalhe, seja a o rock’n’roll demoníaco de “Helter Skelter”, o experimentalismo de “Revolution 9” ou a deliciosa rapsódia de garagem que é “Happiness is a Warm Gun”. Na verdade, George Martin revelou várias vezes que teria preferido um álbum num disco só, mais forte e coeso. Eventualmente terá cedido, só podia ser assim. Sobre “Revolution” disse que “o objetivo foi a distorção, toda a distorção disponível”. E disse-o muito bem.

Yellow Submarine

Não foi só a banda de parada que aparece no meio da canção que deu título à fita; na verdade, a influência de George Martin não se ficou sequer apenas pela canção. O produtor foi fundamental em toda a banda sonora do filme, ao assinar e dirigir todas as composições instrumentais. No disco editado no início de 1969, o lado B é totalmente composto pelas músicas de Martin.

Strawberry Fields Forever

O sonho psicadélico de John Lennon foi operado na linha de montagem por George Martin, que pegou nos diferentes pedaços da canção, originalmente criada como uma simples melodia acústica, e a transformou num dos mais perfeitos exemplos de trabalho em estúdio. A voz de Lennon, a bateria de Ringo, a ligação entre as diferentes partes, os arranjos sem aviso que acentuam o dramatismo de cada momento, a fita trabalhada por um malabarista sonoro que teve aqui um dos meus melhores pedaços de hipnose pop que alguma vez — ele ou qualquer outro — produziu. Neste vídeo está uma versão ainda não definitiva, que mostra a diferença entre o resultado final, depois de todo o trabalho de produção.