Ela era velha, excêntrica, levemente lunática, brusca e altiva. Vestia-se com roupa usada e mal-cheirosa, dizia receber instruções da Virgem Maria, venerava a rainha Isabel II, não falava sobre o seu passado, ficava furiosa quando ouvia música e deslocava-se numa furgoneta decrépita onde também vivia, rodeada de objectos, sacos de plástico e trapos. Um belo dia nos anos 70, Miss Shepherd chegou à rua do bairro londrino onde vivia o dramaturgo e argumentista Alan Bennett (“A Loucura do Rei George”), para desalento de todos os moradores, porque a última coisa que queriam era ter estacionada à porta de casa aquela ruína ambulante, com a sua inconveniente proprietária lá dentro ou a cirandar pela vizinhança.

Bennett deu autorização a Miss Shepherd para instalar a fétida furgoneta por três meses no pátio de sua casa. A velha senhora e o seu veículo acabaram por lá ficar durante 15 anos. Da insólita e nem por sombras pacífica ou terna relação de amizade entre ambos, e da complicada e trágica história da vida da velhota, que foi conhecendo aos poucos, Bennett tirou uma novela curta e uma peça de teatro, “A Senhora da Furgoneta”, em 1999, levada à cena em Londres com enorme sucesso por Nicholas Hytner e com Maggie Smith no papel de Miss Shepherd. Em 2009, a peça teve uma versão para rádio, com a actriz repetente na interpretação. E é agora um filme, realizado pelo mesmo Nicholas Hytner que a levou à cena, com argumento de Alan Bennett e, mais uma vez, Maggie Smith como Miss Shepherd, enquanto Alex Jennings interpreta os dois Alan Bennett (o escritor que escreve e o escritor que vive, e que passam o tempo a dar bicadas um no outro).

[Veja o “trailer” de “A Senhora da Furgoneta”]

O filme — rodado à porta da casa do autor, onde tudo se passou — não faz por ocultar as suas origens teatrais, nem Bennett por camuflar o incómodo – não poucas vezes alçado a exasperação — que foi a presença da brusca e imprevisível Miss Shepherd e da furgoneta, em especial quando ela lhe pedia para usar a casa de banho. O argumento insinua que o enigma que a velha senhora representava (Quem era? De onde vinha? Teria família? Qual a origem das suas manias, temores e sobressaltos?), e não apenas a compaixão — aliada a alguma imprudência –, terá pesado na decisão do autor consentir que ela se instalasse de furgoneta e bagagens na sua propriedade.

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[Veja a entrevista com Maggie Smith]

Em paralelo, assistimos ao evoluir da doença da mãe de Bennett, e ironicamente, apesar de estar rodeada dos melhores cuidados possíveis, a condição da senhora vai-se degradando, enquanto que Miss Shepherd permanence sã como um pero, mesmo vivendo no meio do seu lixo numa carrinha jurássica. Os vizinhos da classe média bem-pensante não escapam ao embaraço de terem de tolerar a velhota, enquanto rezam a todos os santos para que ela desapareça do bairro. E acabamos por admirar o autor, por ter aturado tanto tempo as excentricidades e a imprevisibilidade da sua desconcertante convidada.

[Veja a entrevista com Alan Bennett e Alex Jennings]

Divertido e caracteristicamente britânico, em especial nas observações sociais, e podado de sentimentalice, “A Senhora da Furgoneta” é, mesmo assim, um filme desconjuntado e episódico (e dispensava-se aquele epílogo fantasista no cemitério), dependendo da presença de Maggie Smith no papel principal como um toxicodependente da sua dose regular. Usando o seu vasto arsenal expressivo, ela interpreta Miss Shepherd na medida certa entre o insofrível e o pungente, o extravagante e o desagradável, o vulnerável e o irredutível, sem nunca pedinchar a piedade do espectador nem ir tão longe na arrogância que o faça perder o interesse nela. E deixando entrever a mulher educada, culta e assombrada por uma culpa do passado sob a excêntrica vestida de trapos, a cheirar a urina, obcecada pela cor amarela e a vociferar contra o mundo. Com outra actriz que não Maggie Smith, “A Senhora da Furgoneta” tinha gripado.