“Foro privilegiado” é um conceito jurídico que deve ter lido nas notícias sobre a nomeação de Lula da Silva como ministro chefe da Casa Civil da Presidência da República, uma espécie de primeiro-ministro no Brasil. Significa, como também já deve saber, que Lula não poderá ser investigado pela equipa original do Ministério Público do Estado do Paraná que investiga a operação Lava Jato, nem julgado pelo juiz Sérgio Moro. O foro especial, é esta a designação em Portugal, não dá imunidade mas obriga a que Lula apenas possa ser investigado por um tribunal superior: o Supremo Tribunal Federal.

Em 2006/2007, o primeiro governo de José Sócrates quis aplicar uma lei idêntica para os titulares do poder executivo (ministros e secretários de Estado) e do poder legislativo (deputados) mas, devido à contestação pública, a ideia acabou por ser deixada na gaveta.

  • Os ministros, secretários de Estado e deputados, que sempre foram investigados e julgados em primeira instância, passariam a ter direito a um foro especial nos tribunais da relação. Isto é, só poderiam ser investigados por um procurador-geral adjunto colocado na segunda instância e julgados por juízes desembargadores;

Outro regime especial para os políticos passaria pelas novas regras das escutas telefónicas – que tanta polémica tinham causado durante o caso Casa Pia. Assim:

  • Presidente da República, Presidente da Assembleia da República e primeiro-ministro teriam direito a um foro especial em que só o presidente do Supremo Tribunal de Justiça poderia autorizar e validar as escutas telefónicas realizadas aos titulares daqueles cargos de topo do poder executivo e legislativo;
  • Por outro lado, no que foi visto como uma medida que visava proteger essencialmente os titulares de cargos políticos, a comunicação social passaria a ser proibida de revelar escutas telefónicas de processo em segredo de justiça sem a a autorização expressa dos visados pelas escutas.

A contestação a estas propostas da Unidade de Missão foi imediata, sendo a medida que visava implementar um foro especial para a classe política imediatamente contestada pelo Poder Judicial e pela generalidade da opinião pública. Muitos analistas ligaram essas propostas às consequências do caso Casa Pia.

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A procuradora-geral adjunta Maria José Morgado afirmou mesmo em 2006, ao Público algo que, agora, que pode ser visto como declarações premonitórias sobre a atual situação do Brasil:

Estamos a tornar a investigação criminal em administrativa (…) Se aliarmos a isso o foro especial para crimes praticados por titulares de cargos políticos, podemos encontrar-nos numa situação quase de países da América Latina em que há razões de Estado que travam e limitam as investigações criminais. E isso é inaceitável”.

A contestação pública, e a recusa do PSD em apoiar as medidas, fez com que o governo de José Sócrates deixasse cair a ideia de foro especial para políticos nas negociações com os social-democratas, então liderados por Marques Mendes, no famoso Pacto sobre a Justiça.

Já o segundo grupo de alterações avançou, com o acordo do PS e do PSD.

As consequências da reforma Sócrates: Face Oculta e caso BES

Quais foram as consequências? Simples:

  • Depois da revisão penal de 1998 ter feito com que o presidente da Assembleia da República e o primeiro-ministro passassem a ter o mesmo direito do Presidente da República (apenas podem ser investigados e julgados pelo Supremo Tribunal de Justiça (STJ) por crimes praticados no exercício das suas funções), a partir de 2007 também as escutas telefónicas ganharam um foro especial: só o presidente do STJ pode autorizar e validar as escutas realizadas aos titulares daqueles órgãos de soberania.
  • O conteúdo das escutas praticamente desapareceu dos órgãos de comunicação social – que passaram a incorrer em dois tipos de infração: violação do segredo de justiça e violação da proibição de revelar o conteúdos de escutas em segredo de justiça e sem autorização dos visados.

Há casos concretos em que o efeito prático destas regras já se tenham verificado? Vários. Apenas dois exemplos:

  • Processo Face Oculta. José Sócrates, o primeiro-ministro que assinou a lei, foi o primeiro grande beneficiário das mesmas. Sócrates não foi escutado diretamente pelo Departamento de Investigação e Ação Penal do Baixo Vouga, mas foi apanhado de forma fortuita nas escutas realizadas a Armando Vara a organizar um alegado plano de controlo da comunicação social portuguesa com o objetivo de controlá-la politicamente. As escutas foram enviadas para o então procurador-geral Pinto Monteiro com a recomendação de abertura de um inquérito criminal mas acabaram por ser consideradas ilícitas e destruídas por ordem de Noronha Nascimento, presidente do STJ, com a concordância de Pinto Monteiro.
  • Caso BES. José Maria Ricciardi, suspeito num dos inquéritos do Monte Branco, estava sob escuta quando falou em 2012 com Passos Coelho, então primeiro-ministro, sob a privatização da EDP e da Rede Elétrica Nacional. As escutas foram validadas por Noronha de Nascimento mas, neste caso, Passos Coelho não era suspeito da prática de qualquer acto criminal.

Resumindo. As regras do foro especial em Portugal para a classe política são as seguintes:

  1. A instrução de inquéritos relacionados com titulares de órgãos de soberania obrigam a que:
  • A apreciação de escutas telefónicas fortuitas nas quais o presidente do STJ assume um papel equivalente ao do juiz de instrução criminal de primeira instância, como é o caso de Carlos Alexandre;
  • A abertura de um inquérito contra o Presidente da República, presidente da Assembleia da República ou primeiro-ministro terá de ser liderada por um procurador-geral adjunto colocado na secção criminal do STJ. Todo o inquérito decorrerá no Supremo, assim como a autorização judicial para a realização de diligências;
  • Exista fase de instrução de uma eventual acusação;
  • Exista fase de julgamento no caso de pronúncia;
  • Exista apreciação de recurso no caso de eventual condenação.

Os políticos, contudo, não são os únicos a ter foro especial. Também juízes e procuradores têm direito a ser investigados e julgados por colegas que estejam numa categoria acima da sua. Por exemplo, um juiz de direito (primeira instância) apenas pode ser investigado e julgado no Tribunal da Relação – sem prejuízo de eventuais recursos para o STJ.

Como é no Brasil?

A principal diferença prende-se com o facto dos membros do poder executivo (Presidente da República, ministros, secretários de Estado) e legislativo (deputados e senadores) terem direito a foro especial.

Todos são investigados e julgados pelas secções criminais do Supremo Tribunal Federal.

Outra diferença prende-se com a validação das escutas telefónicas fortuitas – precisamente aquelas que estão a causar neste momento grande polémica pela revelação de escutas que envolvem Lula da Silva (o ex-presidente que foi o alvo da escuta) e Dilma Rousseff (ouvida de forma fortuita).

Membros do governo de Dilma, dirigentes do Partido dos Trabalhadores e diversos juristas têm defendido que as escutas que envolvem Dilma são ilegais por falta de competência do juiz Sérgio Moro para autorizar tais interceções.

O magistrado do Estado do Paraná, por seu lado, defende-se, garantido num comunicado que “não há qualquer irregularidade. A circunstância do diálogo ter por interlocutor autoridade com foro privilegiado não altera o quadro, pois o intercetado era o investigado e não a autoridade, sendo a comunicação intercetada fortuitamente”. Moro diz ainda que “nem mesmo o supremo mandatário da República tem um privilégio absoluto no resguardo de suas comunicações, aqui colhidas apenas fortuitamente”.

Em Portugal, caso o presidente do STJ não tivesse validado tais escutas, as mesmas seriam ilegais. Como aconteceu com as de Sócrates no Face Oculta.