Autor: General Loureiro dos Santos
Título: “A Guerra no Meio de Nós”
Editora: Clube do Autor
Preço: 14€

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O título deste recente livro do General Loureiro dos Santos parece feito para os concretos dias que vivemos. Numa Europa em que durante dias ou semanas há zonas de alguma das suas capitais (a começar pela capital das capitais, Bruxelas, e pela Cidade Luz) militarmente ocupadas e sitiadas – meia dúzia de “soldados inimigos” ao preço de uns módicos milhares de euros causam uma e outra vez, além de dezenas de vítimas, prejuízos e despesas de milhões e com uma grande economia de meios reduzem populações inteiras a uma massa desconfiada e temerosa. É a aritmética da guerra “assimétrica” que faz do fraco forte e do forte, fraco. “O nosso ocidente desbelicizado é uma ilha de calma rodeada por um mar de tormentas”, prevenia em 2005, sem necessidade de especiais dotes de observação, Colin S. Gray – num livro sobre “a guerra futura”, Another Bloody Century (há neste título um trocadilho muito inglês e talvez algum exagero. Mais um século sangrento? Por enquanto – por enquanto – estamos longe das dezenas de milhões de vítimas da guerra no século XX. O triste facto, em todo o caso, é que do século XIX para cá a proporção de vítimas civis das guerras tende a ser cada vez maior, às vezes esmagadora, sem contar com o facto de que a maior parte dos combatentes modernos foram “civis” fardados.) O mar encapela-se e as ondas salpicam toda a gente, em Paris ou Bamako.

A Guerra no Meio de Nós é um título em certa medida enganador, como o seu subtítulo: “A realidade dos conflitos do século XXI”. Pot-pourri de textos avulsos e de categoria muito diferente, alguns de mera circunstância, muitos de cariz jornalístico – destoam expressões como “pífias” (certas medidas) ou “apanhados de calças na mão” (os membros europeus da NATO). Só em parte (as Partes I e II das suas quatro partes) e parcialmente (nas restantes duas partes e mesmo nas duas primeiras) é dedicado ao tema que se anuncia. As Partes I e II são “Estratégias e políticas militares globais” e “Questões de Geoestratégia: conflitos regionais e globais”. Esta última, sobretudo, contém efectivamente nos seus vários capítulos uma revisão a voo de pássaro do panorama e das possibilidades e vertentes da guerra nos dias de hoje. Merecem especial atenção pela reflexão que sugerem as referências à OTAN e aos erros estratégicos dos últimos anos.

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“Questões de Geoestratégia: conflitos regionais e globais” servirá especialmente de proveito aos curiosos que não pensam muito nestes assuntos. “Estratégias e políticas militares globais”, em contrapartida, inclui um breve ensaio sobre “os elementos essenciais de combate” na Grande Guerra e uns “avisos sobre megaeventos” que estão mais ou menos à margem das restantes considerações de alcance mais amplo e também um capítulo sobre “o pensamento estratégico nos nossos dias”, que é, mais singela e modestamente do que faria esperar o título, uma homenagem ao General Abel Couto, por muito simpática e merecida que seja. As outras duas partes são “Para uma política de defesa nacional” – um importante tema de reflexão e para tratar o qual poucos autores estariam mais credenciados do que o General Loureiro dos Santos (Ministro da Defesa em dois governos, antigo vice-chefe do Estado Maior General, antigo Chefe do Estado Maior do Exército, além dos seus pergaminhos académicos na matéria) e “A organização militar como chave da história”, uma promessa excessivamente ambiciosa para o conjunto dos capítulos que contém.

Lisboa, 23/04/2014 - ConferÍncia A Ditadura Portuguesa, na FundaÁ„o Calouste Gulbenkian em Lisboa. General Loureiro dos Santos ( ¡lvaro Isidoro / Global Imagens )

General Loureiro dos Santos ( Álvaro Isidoro / Global Imagens )

Esta quarta parte, na verdade, inclui mais algumas breves considerações sobre a Grande Guerra e a participação portuguesa nela (uma campanha em que entre 1914 e 1918 morreram quase tantos soldados portugueses como nos treze anos da guerra do ultramar), uma homenagem a Medeiros Ferreira, e uma bem-vinda mas convencional exortação patriótica a propósito do 1º de Dezembro. Inclui ainda um dos capítulos mais simplistas – às vezes (astutamente?) simplório – de todo o livro: “Da ditadura à democracia: o papel das Forças Armadas”, um compreensível hino à preeminência da Instituição Militar. Onde se lê, por exemplo, que “foram as Forças Armadas como um todo que criaram, sustentaram e derrubaram a Ditadura” devia talvez ler-se com mais exatidão que as Forças Armadas foram sucessivamente usadas para ajudar a criar, sustentar e derrubar o Estado Novo (que não existia antes de 1933, ao contrário do que parece querer dar a entender o General Loureiro dos Santos: o que existia até lá era a Ditadura Militar).

Nestes textos assoma uma ortodoxia bem pensante e superficial, como a ideia de que a globalização é uma mortífera conspiração de certos poderes económico-financeiros. Quem dera. É igualmente ilusório o vezo de muita da reflexão sobre a guerra em concentrar-se exclusivamente nas suas causas e motivos racionais e nos elementos objectivos da geopolítica. Martin van Creveld, autor do clássico The Transformation of War, resumiu de forma lapidar uma questão frequentemente esquecida: “Não é nem de longe verdade que a guerra seja unicamente um meio para alcançar certos fins nem que as pessoas combatam necessariamente para alcançar este ou aquele objectivo. A verdade, de facto, é justamente o contrário: as pessoas escolhem muitas vezes este ou aquele objectivo precisamente para poderem combater. Pode muito bem questionar-se a utilidade da guerra para conseguir efeitos práticos mas a sua capacidade de distrair, exaltar e fascinar nunca esteve em dúvida”. Em A Guerra no Meio de Nós o autor cita mais de uma vez um título de Eduardo Lourenço: “O fim das guerras e a guerra sem fim”. É uma fórmula espampanante, como a do autor, quando diz que “para o mundo de amanhã a incerteza é o que podemos ter por mais certo”. Mas não caiamos no “provincianismo do presente”. A incerteza, como a guerra, é uma constante da história do homem. Correcção cultural por correcção cultural, citemos as primeiras linhas de Como organizar Portugal de Pessoa: ‘Quando a guerra findou – como se a guerra alguma vez findasse ou houvesse no mundo senão guerra!’ …

Nesta “ilha de calma”, o que temos estado, felizmente para nós, é mal habituados.

[Para eventuais interessados: a Agência Stratford mencionada no livro calcula-se que seja a firma de estudos estratégicos Stratfor (Strategic Forecasting, Inc.) fundada por George Friedman; a jornalista Anne Applebaum, referida como ‘colunista alemã do Washington Post’ não é alemã, é polaco-americana]

Miguel Freitas da Costa foi cronista no Expresso, no Público, no Diário Económico e no DN, entre outras publicações. Foi director editorial da Guimarães Editores e secretário-geral da Associação Portuguesa de Editores e Livreiros. É tradutor.

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