Nem ao berlinde. Nenhum adepto, jogue o clube ou a sua Seleção, seja belga, português ou de onde for, quer perder um jogo. Amigável? Não, nem esses. Aos jogadores, nem uma caixa de Rennie, das maiores, chega para curar a “azia” de uma derrota, seja a feijões ou não o jogo. Os treinadores, sempre com a corda no pescoço, sempre os bodes expiatórios da derrota, também não querem. Ninguém quer. Mas esta noite, em Leiria, no estádio Dr. Magalhães Pessoa, ganhasse quem ganhasse, ganhávamos todos.

Jogava-se futebol, sim. Mas jogava-se mais do que isso: jogava-se em memória das 35 vítimas mortais dos atentados de Bruxelas, a 22 de março. Jogava-se contra o medo do terrorismo, pela liberdade. Os jogadores de Portugal e da Bélgica uniram-se. Verdadeiramente. Escutavam-se os hinos. E enquanto se escutavam, não estavam os belgas perfilados de um lado e os portugueses do outro, com os árbitros pelo meio, como é hábito num jogo. Não. Este não era um jogo mais. Os jogadores perfilaram-se lado a lado, intercalados, Ronaldo ao lado de Courtois, Witsel ao lado de Patrício, em silêncio, de rosto sério, a escutar. O futebol veio depois.

Créditos: Gerardo Santos/Global Imagens

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Valeu pela primeira parte. E comecemos por ela. Portugal foi melhor. A Bélgica, melhor seleção de futebol do mundo no ranking da FIFA, mal se viu. E não é uma Bélgica qualquer. Há soluções de sobra para compor pelo menos dois onzes de topo. Esta noite nem houve Eden Hazard, Christian Benteke, Yannick Ferreira-Carrasco ou Jan Vertonghen — Uuufaaaaa! São mais que muitos. Mas houve Courtois, Witsel, Fellaini ou Lukaku. E chega.

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Aos 10′ de jogo, Ronaldo. Simplesmente Ronaldo. O capitão português, descaído sobre a esquerda do ataque, deixou os rins do central Denayer feitos num oito, desmarcando depois João Mário na área com um toque de calcanhar entre as pernas do belga. João Mário encheu-se de força, chutou, mas o remate foi defendido para longe por Courtois. E foi lá de longe, da entrada da área, que Adrien testou novamente os reflexos ao belga, matulão que só ele, mas a recarga foi novamente defendida por Courtois. Estava dado o primeiro aviso.

O aviso seguinte veio logo depois, aos 13′. Que defesa de Courtois! Ou melhor, que defesas. Cédric avançou pelo seu flanco, o direito, e cruzou para o meio da área, onde Nani cabeceou. Um cabeceamento que ia com selo de golo. O problema é que guarda-redes belga voou (literalmente!) e defendeu para canto. Na sequência desse canto, cruza João Mário para o segundo poste, Ronaldo salta mais que os centrais belgas na molhada, e cabeceia. Voltou a defender Courtois, desta vez para a barra. Estava inspirado, Thibaut. Será que íamos ter outro guarda-redes a defender tudo e mais um par de botas em Leiria, como na última sexta-feira um tal de Stoyanov (quem?) defendeu? A resposta é não.

Nani fez o 1-0 aos 20′, desmarcado por André Gomes. E a desmarcação é um primor, com a parte exterior da bota. André estava descaído sobre a esquerda do ataque, Guillaume Gillet veio de pronto pressioná-lo, e o médio português desmarcou Nani (que se escapou nas costas do belga) na área. O resto foi a classe de Nani, a desviar a bola do gigante Courtois, que se chegava a ele de braços (que enorme são!) abertos no ar. O extremo do Fenerbahçe (hoje, à falta de um ponta-de-lança melhor, voltou a dividir o ataque com Ronaldo) fez hoje o seu 18.º golo pela Seleção. Não marcava por Portugal desde novembro, contra o Luxemburgo.

A Bélgica continuava sem rematar. E quando Portugal contra-atacava, era um ai-Jesus na sua defesa. Aos 31′, Ronaldo acelerou. E quando ele acelera, é raro quem tenha um par de pernas para o apanhar. Gillet não teve. Denayer, idem. No meio de tanta aceleração, tanto excesso de velocidade, Ronaldo ainda viu João Mário a desmarcar-se a seu lado, à direita, e passou-lhe a bola. João não rematou logo, tentou contornar Courtois, mas o guarda-redes belga é tão grande que, quando deu por ela, o médio do Sporting já não tinha ângulo de remate. E perdeu-se um golo feito. Ou quase.

A Bélgica lá rematou. Alguma vez havia de ser, não é? Patrício, leiriense dos sete costados, natural que é dos Marrazes, estava a ter uma noite sossegada contra a Bélgica. Mas aos 37′ Dries Mertens avançou em dribles da esquerda para dentro, e mal se aproximou da área, rematou. O remate era forte, mas Rui Patrício, bem colocado, aninhou a bola sem problemas de maior.

Remataram os belgas aí, marcou Portugal na volta. Foi aos 40′. E foi Ronaldo, quem mais? Ele fartou-se de falhar golos contra a Bulgária. Até um penálti Ronaldo falhou. Ou melhor, um super-Stoyanov (sem capa e com uma barriguinha saliente) defendeu. Hoje lá molhou a sopa. E não tivesse Thibaut Courtois defendido para a barra no começo do jogo, a contagem até seria outra. O passe de João Mário, desde a direta, é meio golo. Ronaldo saltou entre os centrais — mais alto que Jason Denayer e antecipando-se a Nicolas Lombaerts — e desviou a bola de Courtois. Mais: quebrou o jejum de quatro jogos sem marcar por Portugal; a última vez foi a 13 junho, quando fez um hat-trick à Arménia.

Créditos: PAULO CUNHA/LUSA

Créditos: PAULO CUNHA/LUSA

Intervalo? Ainda não. Não sem antes Portugal voltar a por a Bélgica em sentido. O que André Gomes falhou! Foi aos 43′. João Mário subiu “de mota” pela direita, Thomas Vermaelen ficou a vê-lo passar, e o português cruzou para a área, um cruzamento a rasgar a defesa e que os centrais só seguiram com os olhos. André Gomes surgiu ao segundo poste, rematou de primeira com a canhota, e o remate subiu, subiu, subiu…

Agora sim, intervalo.

Lembra-se de lhe ter dito que o jogo valeu pela primeira parte? Culpem-se as substituições em barda, culpe-se quem se quiser culpar, mas a verdade é que o recomeço foi uma pasmaceira do começo ao fim. O primeiro remate com perigo (só) surgiu aos 51′ — e pelo inevitável Cristiano Ronaldo, pois claro. Dormiu na forma, Gillet. A bola é cruzada desde a direita por Cédric, Nani salta com Nicolas Lombaerts ao primeiro poste, mas nenhum deles desvia a bola. Esta acabaria por cair nos pés de Guillaume Gillet, no centro da área. O problema é que Gillet deu o lance como fácil, mas quando há Ronaldo por ali, a rondar, nunca é “fácil”. E Ronaldo antecipou-se mesmo ao belga, surripiou-lhe a bola e rematou de seguida. Errou a baliza por um palmo, pouco mais. Entrava melhor Portugal.

A Bélgica respondeu em seguida. Não ia lá com a bola no pé, a circulá-la, foi lá com ela parada, paradinha. Foi aos 56′. Patrício ainda tem as luvas quentes a esta hora. O livre era frontal, ligeiramente descaído para a esquerda, mas ainda longe da baliza portuguesa. Ou ia em força, ou não ia. E foi. Dries Mertens tocou para o lado, Radja Nainggolan encheu o pé e de lá saiu um míssil. Patrício desviou, como pôde, para a frente. O que vale é que não houve recarga belga.

Não houve muito o que contar até aos 63′. E falo-lhe deste minuto porque é o minuto do golo belga. Um golo que foi uma festança em casa da família Lukaku, certamente. O lateral Jordan, recém-entrado e de tranças ao vento, subiu pela esquerda, levantou a cabeça e cruzou para a área. Estava lá o irmão mais velho, Romelu Lukaku, a cabecear (à vontade, diga-se) no centro da área portuguesa. Reduz a Bélgica no terceiro remate que fez em todo o jogo.

Substituição daqui, substituição dacolá, mexe Fernando Santos, mexe Marc Wilmots, e o jogo deu o que tinha a dar. Portugal voltou ao 4-3-3 clássico, com Éder a ponta-de-lança e com Bernardo Silva e Quaresma nas alas. Foi pior a emenda que o soneto — e o “soneto”, com Ronaldo e Nani a sós na frente, nem foi nada mau. Eis um exemplo: aos 76′, driblou, driblou, driblou mais um e depois outro, mas não havia maneira de Éder (qual pino daqueles com que se treinam os livres nos treinos) se esgueirar nas costas dos centrais belgas. Quando assim é, Quaresma, por tanto que drible, não tem outro remédio a não ser rematar. Acertou na baliza, mas Thibaut Courtois ajoelhou-se e encaixou o remate a meia altura do “ciganito”.

É verdade que faltavam 15 minutos até final. Mas lá se passaram — com suplício, mas passaram. Portugal ganhou, Fernando Santos (se dúvidas houvesse, dissiparam-se hoje) ganhou uma tática para o Euro sem ponta-de-lança, mas também ganhou a Bélgica e os belgas, apesar da derrota por 2-1. Este é daqueles jogos em que vencemos todos. Oxalá não precisemos de voltar a vencer um jogo por este motivo. Antes perder com a Bulgária. Mil vezes perder com a Bulgária.