Nome: Gratidão
Autor: Oliver Sacks
Editor: Relógio d’Água
Páginas: 48
Preço: 11€

oliver sacks

A epígrafe que abre o mais recente livro de Oliver Sacks resume com apenas uma imprecisão os quatro ensaios que o compõem, onde o neurologista britânico relata a sua relação com a morte que na altura, devido à detecção de uma metástase de uma forma rara de melanoma no fígado, se aproximava velozmente, tendo chegado em Agosto de 2015. Gratidão tem como mote “estou agora frente a frente com a morte, mas não acabei a vida”, um mote que, não fosse o uso da adversativa, resumiria perfeitamente o que se passa ao longo das suas páginas. O que Sacks nos procura mostrar nestes ensaios escritos entre Julho de 2013 e Agosto de 2015 é que não existe contradição nenhuma — como o uso da conjunção “mas” sugere — entre estar diante da morte e não se ter acabado de viver. Em Gratidão, é sugerido que o confronto com a morte é até, em certo sentido, como veremos, um momento inaugural da vida.

Com a aproximação, cada vez mais rápida, da morte, duas ideias tornam-se claras para Sacks. Em primeiro lugar, o escritor afirma-se repetidamente agradecido (um agradecimento peculiar, uma vez que não se dirige a nenhuma entidade específica, mas apenas àquilo a que, à falta de melhor termo, poderemos designar por “vida”). Mas Sacks confessa também que, na iminência da morte, se sente no dever de “tentar completar a [sua] vida, seja lá o que ‘completar uma vida’ queira dizer”. No ensaio a que chamou A Minha Vida, escrito poucos dias depois da descoberta das metástases no fígado que o viriam a matar, o neurologista escreve:

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Nestes últimos dias, tenho podido ver a minha vida como que de um lugar muito alto, como uma espécie de paisagem, e com um sentido profundo de ligação entre todas as suas partes. O que não significa que para mim a vida tenha acabado. Pelo contrário, sinto-me intensamente vivo.”

Nesta passagem, que parece uma outra versão da epígrafe do livro, Oliver Sacks sugere que no momento em que a morte deixou de ser uma ideia vaga e distante e se transformou numa realidade incontornável, a sua vida passou a ser vista não como uma manta de retalhos mas como algo com um sentido, em que todas as partes comunicam entre si. A morte vem assim dar um sentido profundo à vida, tornando-se portanto possível desta forma que Sacks a complete, da mesma forma, por exemplo, que um pintor completa um quadro. No entanto, por paradoxal que pareça, este afastamento que a morte cria entre o escritor e a sua própria vida fá-lo sentir-se “intensamente vivo”.

De seguida, o neurologista enumerará tudo o que deseja fazer com o tempo que lhe resta. A lista que daí resulta vai desde coisas prosaicas, como despedir-se de quem ama, viajar, escrever ou fazer “algumas coisas estúpidas” a coisas elevadas como “aceder a novos níveis de inteligência e de conhecimento”. Mas mais interessante do que aquilo que o autor de Musicofilia deseja fazer com o seu tempo é o que se compromete a deixar de fazer. Diz Sacks que, uma vez que “não há tempo para nada que não seja essencial”, irá “deixar de ver a NewsHour todas as noites. Deixar de prestar a menor atenção a questões políticas ou às discussões sobre o aquecimento global”, explicando que esta decisão não se deve a indiferença mas a desprendimento. Oliver Sacks pretende deixar de se “ocupar desses problemas, que pertencem ao futuro” não por, ao compreender que a sua morte está quase a chegar, se tornar num devoto hedonista mas por perceber que as grandes questões do mundo e da sociedade não são necessariamente as grandes questões da humanidade ou, melhor dizendo, as grandes questões da sua vida. Com a vinda da morte, o descongelamento das calotas polares ou a solução para os conflitos do Médio Oriente perdem a importância porque não é na resposta a esses problemas que se pode encontrar a melhor maneira de completar uma vida, seja lá o que isso queira dizer.

Contra o tempo

Em A Minha Tabela Periódica, o escritor faz uma interessante historização da sua relação com a morte. Diz Sacks que quando era jovem, para lidar com a perda de pessoas que amava, se refugiava no mundo da física, esse mundo “onde não há vida, mas também não há morte”. Conta ainda nesse mesmo ensaio que ter um dia visto o céu cheio de estrelas no Deserto de Atacama, no Chile, o fizera “compreender de súbito como era pouco o tempo, como era pouca a vida, que [lhe] restava. O [seu] sentimento de beleza do firmamento e da eternidade fundia-se inseparavelmente (…) com um sentimento de transitoriedade – e de morte”. Se na primeira história percebemos que o jovem Oliver Sacks via a morte como um ser monstruoso do qual devia fugir desesperadamente, na segunda, já mais velho, apercebe-se de que há uma qualquer relação estranha e incompreensível entre a beleza e a morte. No entanto, ambas as histórias têm em comum o facto de, por ser ainda uma possibilidade remota, a morte não causar qualquer alteração na vida. Não é, todavia, isso que acontece na velhice do autor britânico, ainda que também na velhice se rodeie de metais e minerais, esses “pequenos emblemas da eternidade”. Com a doença, aquilo que a morte revela permanece um mistério, mas seja o que for que a morte signifique (e a relação de Sacks com a morte nunca o aproxima minimamente da espiritualidade ou do sobrenatural, como o próprio afirma no ensaio que acabou de escrever quinze dias antes de falecer), leva-o a pensar:

No que significa viver uma vida boa e digna de ser vivida, de modo que nos sintamos em paz connosco”, leva-o a procurar uma qualquer conclusão que faça sentido.”

É esta dificuldade que Sacks revela em encontrar uma resposta às questões levantadas pela morte que tornam Gratidão tão interessante. Sacks não se reaproxima do judaísmo, não descobre uma resposta para as perguntas que levanta, nem embarca nas reacções clássicas e banais de alguém que aos oitenta e dois anos descobre que não viverá mais do que meia dúzia de meses. Em nenhum momento Oliver Sacks se torna, por exemplo, saudosista. Mesmo os momentos em que o saudosismo bate à porta são transformados em algo maior e infinitamente mais interessante, como quando o neurologista reflete acerca da morte dos homens e mulheres do seu tempo e se apercebe de que o drama verdadeiro não está no fim de uma geração, que será sempre substituída por outra, mas no fim das pessoas que a compuseram, essas sim completamente insubstituíveis. É isso que está a ser dito em A Minha Vida, onde lemos:

A minha geração está prestes a desaparecer e, a cada uma das mortes dos seus membros, senti como se se dilacerasse e desprendesse de mim uma parte de mim próprio. Não haverá ninguém como nós depois de termos desaparecido, mas a verdade é que, seja como for, não há ninguém como ninguém. As pessoas, quando morrem, não podem ser substituídas. Deixam buracos que não podem ser colmatados, porque é destino de cada ser humano (…) ser um indivíduo único, descobrir o seu próprio caminho, viver a sua própria vida, morrer a sua própria morte.”

Ao perceber que toda a sua geração está a desaparecer, Sacks percebe que a morte é um assunto exclusivamente individual, que, tal como cada um de nós vive a sua própria vida, também cada um de nós morrerá a sua própria morte. Sacks percebe, com a chegada da morte, aquilo que Sean Penn diz a Tim Robbins em “Mystic River”, imediatamente antes de o matar. Percebe que “you do this part alone”.

João Pedro Vala é aluno de doutoramento do Programa em Teoria da Literatura da Universidade de Lisboa.

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