No cinema, os contos de fadas andam a sofrer tratos de polé. Ora são revisitados para serem transformados em filmes de acção a carburar a efeitos digitais – ver “A Branca de Neve e o Caçador” ou “Hansel & Gretel: Caçadores de Bruxas” – ora são virados do avesso sem cerimónia, como fez a Disney em “Maléfica”, onde a feiticeira má de “A Bela Adormecida” afinal é a heroína da história, dando-lhe uma voltinha feminista e tudo (a mesma Disney, diga-se em seu crédito, também produziu uma versão muito institucional de “Cinderela”, realizada por Kenneth Branagh, mas foi a excepção que confirma a – actual – regra).

Por isso, é muito bem-vindo um ponto de vista europeu dos contos de fadas, respeitador das fontes narrativas, sem impulsos revisionistas nem graças iconoclastas, e parcimonioso no recurso aos efeitos computacionais sem por isso abdicar da espectacularidade, tal como é apresentado pelo italiano Matteo Garrone (autor dos excelentes “Gomorra” e “Reality”) em “O Conto dos Contos”, uma co-produção italo-franco-britânica que dispôs de um confortável orçamento de grande produção ao nível do Velho Continente. (Competiu no Festival de Cannes).

[Veja o “trailer” de “O Conto dos Contos”]

Querendo fugir aos autores e aos títulos mais conhecidos e populares, Garrone apontou a Nápoles e foi seleccionar três contos locais que fazem parte da recolha feita no século XVII pelo soldado, cortesão e poeta Giambattista Basile (1566-1632), tirados do livro “Lo Cunto Delli Cunti Overo lo Trattenemiento de Peccerille”. Deste, os irmãos Grimm disseram ser a primeira e a mais rica colecção de carácter nacional do género. Nele encontramos versões regionais de contos tradicionais clássicos como “O Gato das Botas” ou “Cinderela”, mas também outros menos conhecidos, caso do trio que forma este filme.

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[Veja uma cena do filme]

As histórias passam-se em três reinos contíguos, e estão entremeadas, tendo uma conclusão comum que as ata. Na primeira, uma rainha estéril consulta um adivinho que lhe diz que ela só engravidará se comer o coração de um monstro marinho cozinhado por uma virgem. O rei caça o dito monstro, a rainha come o coração e dá à luz um rapaz albino, mas o mesmo sucede à serva que confeccionou o mágico petisco. E os bebés são como irmãos gémeos. A rainha proíbe o príncipe de ver o seu equivalente plebeu, mas este desobedece-lhe. Ela tenta matá-lo e o rapaz foge. Na segunda, um rei viúvo descuida o afecto da sua única, bonita e prendada filha, dedicando-se em segredo a mimar a sua insólita mascote, uma pulga gigante, e a princesa acaba por ser levada por um ogre. E na terceira, um rei dissoluto, seduzido pela voz celestial de uma das suas súbditas, pensa tratar-se de uma jovem, quando na verdade é a voz de uma de duas pobres e idosas irmãs, que tem medo de se mostrar ao monarca, o que vai causar duas tragédias, uma delas revertida por uma feiticeira.

[Veja a entrevista com Matteo Garrone]

Embora de extracção local, os três contos de fadas de “O Conto dos Contos” têm temas, personagens, situações e um fundo moral intemporais e de ressonância universal, mas também um muito italiano e pronunciado gosto pelo grotesco. A violência e a crueldade são omnipresentes (ver o combate sangrento com o ogre na segunda história, e o destino da segunda irmã idosa na terceira), e o realizador e os seus três co-argumentistas não as atenuaram para agradar aos espíritos mais sensíveis. E fizeram muito bem, pois isso significaria amputá-las de duas das suas componentes mais autênticas e significativas.

[Veja as entrevistas com Salma Hayek e Vincent Cassel]

Em vez de conceber um mundo feericamente hollywoodesco com efeitos digitais para situar as narrativas, Matteo Garrone optou por um maravilhoso “realista” em “O Conto dos Contos”, filmando em cenários naturais, castelos, palácios, jardins, aldeias tradicionais e cidades de Itália, de Nápoles à Toscana, passando pela Sicília. O que, apesar da existência de criaturas monstruosas e da inevitável utilização de efeitos digitais nalgumas sequências, mesmo que de forma discreta e comedida, dá à fita uma saborosa dimensão “artesanal”, um ar de fantasia cinematográfica pré-computadores, equilibrando o real e o irreal na representação dos reinos de Selvascura, Altomonte e Roccaforte, e na narração das histórias em si, tornadas mais “humanas” e mais próximas de nós.

[Veja outra cena do filme]

O filme sofre um pouco por Garrone ter optado por contar as três histórias cosidas umas nas outras e não em sequência. E como “O Conto dos Contos” tem que ser vendido e rentabilizado no mercado mundial (a produção custou 12 milhões de euros), e apresentar um elenco internacional onde surgem nomes de primeiro plano como Salma Hayek, John C. Reilly ou Vincent Cassell levou a que fosse falado num inglês pouco homogéneo e impessoal o que lhe amolga a autenticidade e a identidade. Existe uma versão italiana do filme para consumo doméstico, mas na Europa estamos condenados a esta. Mesmo assim, “O Conto dos Contos” sobrevive a esta contrariedade linguística ditada pelo imperativo comercial.