É sobre as questões ambientais que Vera Mantero tem trabalhado nos últimos tempos. Se há dois anos, em “Mais pra Menos que pra Mais”, dançou no meio dos legumes, em hortas urbanas, agora a coreógrafa estreia, no Teatro Maria Matos, em Lisboa, “O Limpo e o Sujo”, a sua mais recente criação (em palco até domingo, 3 de Abril, integra o ciclo As 3 Ecologias, que reúne projectos artísticos, debates, workshops e encontros).

“Esta peça insere-se nessa continuidade e nas temáticas deste ciclo: que práticas podemos nós ter que sejam transformadoras das nossas subjetividades, das nossas pessoas? E não só enquanto indivíduos mas enquanto grupos”, diz Vera Mantero. Tudo começa a partir do livro que dá título ao ciclo. “As 3 Ecologias é um livro muito interessante, do Félix Guattari, de 1989, em que ele defende que a ecologia ambiental é muito importante mas que não vai ser possível fazer nada em relação a ela se não pensarmos também numa ecologia social e numa ecologia pessoal. E é isso mesmo que o ciclo tenta explicar.”

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Vera Mantero

Em palco estão quatro pessoas. O músico, João Bento, e os intérpretes, Elizabete Francisca, Volmir Cordeiro e Vera Mantero. E se em alguns momentos parecem estar a limpar-se, a libertarem-se de tudo o que neles reside, dos ouvidos à boca, passando por todo o corpo, num duro e longo processo da dita ecologia pessoal, noutros parecem abraçar esses mesmos elementos, numa dualidade sempre presente ao longo do espectáculo.

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“Precisamos de alguma sujidade para nos equilibrarmos. Precisamos de algo nem muito direitinho nem muito asséptico para nos irmos equilibrando. Sempre vi isso em rituais tribais em que, muitas vezes, as pessoas transformam radicalmente o corpo, pintam-se de alto a baixo, rebolam na lama… E depois vão à sua vida.”

Em “O Limpo e o Sujo” não há apenas um processo de limpeza da sujidade ou de libertação dos problemas. “Aquilo que é limpo e aquilo que é sujo alterna-se, é uma coisa interactiva. Nos ensaios, através do movimento tentámos dar a ideia de que se tiravam coisas de dentro da boca e que se limpava o corpo com isso. É a ideia de que aquilo que vem de dentro limpa – o contrário da habitual”, diz a coreógrafa, lembrando o que aprendeu, ou reaprendeu, ao dançar nas hortas urbanas: que nas zonas assépticas não há vida. “Para criar as plantas que comemos é preciso estrume, é preciso porcaria. Essa porcaria produz a vida. É importante lembrarmo-nos disso. Tal como não podemos meter debaixo do tapete as coisas que estão tortas em nós. Vamos ter que olhar para elas se as queremos endireitar. Temos que as agarrar, as abraçar, temos que mexer com elas.” O corpo transforma-se, liberta-se, mas não rejeita.

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Elizabete Francisca e Volmir Cordeiro

Não é possível definir um tema concreto para a criação, um destino a que se propusessem chegar. A nenhum dos intérpretes (todos responsáveis pela peça) interessa trabalhar de forma linear, importa sim um movimento que fluido, tal e qual o corpo. “Tivemos um período de leituras, de discussões, de conversas sobre a ideia do cuidar de si, de uma transição interior, estivemos um período a olhar para isso tudo e depois deixámos passar um período sem ensaios. Quando voltámos fomos ver que danças é que se estavam a passar em nós naquele momento. E foi através das danças que foram aparecendo que fomos encontrar elementos de ligação com o que tínhamos lido, pensado, escrito, discutido. E as coisas foram-se construindo assim, em paralelo.”

Tudo está ligado a essas leituras feitas durante o processo de criação mas também tudo está ligado ao passado, ao que já foi feito, apresentado. E se a transformação do corpo é um óbvio tema recorrente no seu trabalho, em conjunto com a natureza, também a dualidade presente em “O Limpo e o Sujo” – logo no título – é algo que também já vem acompanhando o percurso de Mantero há anos.

Não o posso negar, aliás, tenho outros títulos do género, como ‘Poesia e Selvajaria’. Gosto muito de trabalhar com a dualidade, o consciente e o inconsciente, o verbal e o não verbal, passo a vida nesses lugares. Mas apesar de os expor enquanto dualidades depois na verdade gosto de as trabalhar em entrosamentos, cruzamentos, enovelamentos.”

O “Limpo e o Sujo”, no Teatro Maria Matos, em Lisboa. De 1 a 3 de abril, sexta e sábado às 21h30, domingo às 18h30